Helena Pereira da Silva Ohashi

INTRODUÇÃO ou “Por que Isto Está Aqui?”

O visitante desta página deve estar se perguntando o que essa autobiografia está fazendo aqui, hospedada num site referente a mangá, animê e cultura pop japonesa?

Em 1984, Oshiro Sanenari, então jornalista do São Paulo Shimbun, deu despretensiosamente a seu amigo, o também jornalista e ex-presidente da ABRADEMI Francisco Noriyuki Sato, uma brochura encadernada à mão, aparentemente retirada de uma inundação ou de algum tipo de sério problema de umidade. Na capa da brochura constava o nome da autora, Helena Pereira da Silva Ohashi, e o título “Minha Vida – Brasil – Paris – Japão”. Sem saber o que fazer com a brochura, Sato simplesmente a guardou e esqueceu-a.

Em 1999, já casado e preparando-se para mudar, organizando caixas de livros e papéis que ficariam meses sem ser abertas até o final da reforma da nova casa, Sato reencontrou a brochura. Leu algumas páginas e descobriu tratar-se de memórias da filha de OSCAR PEREIRA DA SILVA (1867 – 1939), grande pintor acadêmico conhecido por obras que ilustram passagens da história do Brasil, como “O Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro” e “A Fundação de São Paulo”, quadros que se encontram no Museu do Ipiranga e que são frequentemente reproduzidos em livros didáticos. O sobrenome japonês se deve ao fato de Helena Pereira da Silva ter se casado com o pintor japonês Ryoukai Ohashi em 1933.

RYOUKAI OHASHI (1895 – 1943) foi um artista prolífico que fez parte de um grupo de quatro jovens japoneses que chegaram em 1927 em Paris para estudar arte. Em seu tempo, foi conhecido como talentoso pintor modernista na França, no Japão, na Argentina e no Brasil.

HELENA PEREIRA DA SILVA OHASHI (1895 – 1966) foi uma pintora habilidosa, com uma técnica acadêmica apurada como a do pai, mas que posteriormente evoluiu para um estilo moderno. Ela também foi a primeira designer de moda brasileira a produzir comercialmente no exterior, onde na década de 30 ela introduziu coleções de prêt-à-porter ocidental atualizadas com Paris para a loja de departamentos Matsuzakaya. Ambos viveram num dos períodos mais ativos da arte no século XX, mas também um dos mais conflituosos, presenciando duas Guerras Mundiais.

Mais alguns anos se passariam antes desta autobiografia vir à luz. Em 26 de junho de 2004, Sato foi com a esposa à Pinacoteca do Estado de São Paulo, que queria ver uma exposição de tapeçarias francesas. Por curiosidade, também foram ver o acervo permanente e lá encontraram dois quadros feitos por Helena, de sua fase acadêmica. Isso despertou a ideia de divulgar a autobiografia, pesquisar informações recentes sobre a obra do casal Ohashi e de doar a brochura que possuem à Pinacoteca.

Embora o trabalho do casal Ohashi seja quase desconhecido no Brasil (provavelmente por não ter feito parte de nenhum grupo ou movimento específico como o dos modernistas, Helena não tem o adequado reconhecimento, constando como pintora do século XIX na Pinacoteca, e poucos quadros de Ryoukai estão na posse de particulares, sendo que nenhum museu em São Paulo tem uma obra dele disponível ao público), Sato descobriu através da internet em japonês que a obra dos Ohashi está sendo redescoberta e valorizada no Japão.

Após ficar viúva em 1943 no Japão, Helena decidiu voltar ao Brasil em 1949, deixando 162 quadros de Ryoukai aos cuidados da irmã dele, Kyoko, que ainda está viva. Em 1995, a casa de Kyoko desabou durante o grande terremoto de Kobe, mas ela conseguiu recuperar os quadros de Ryoukai e os doou ao Ashiya City Museum of Art & History. Desde então, esses quadros foram enviados para Tóquio, onde vêm sendo restaurados. Agora que o extenso trabalho de restauração está terminando, o museu Ashiya programou uma exposição dos quadros de Ryoukai para 26 de fevereiro a 10 de abril de 2005, no décimo aniversário do terremoto.

Recentemente, no período de 24 de abril a 30 de maio de 2004, o museu Ashiya realizou uma exposição intitulada “Mulher Moderna”, com obras de cinco artistas de seu acervo, todas da primeira metade do século XX. Quadros de Helena fizeram parte dessa mostra. O museu também possui um livro sobre a obra do casal Ohashi e um dos quadros de Helena ilustra um cartão postal que é vendido na loja do museu. Além disso, o trabalho desenvolvido por Helena como designer de moda já foi objeto de uma tese de doutorado no Japão.

A doação da brochura à Pinacoteca foi descartada após um breve contato com funcionários da biblioteca. Embora a autobiografia de Helena P. da Silva Ohashi não esteja listada no fichário de livros, a bibliotecária responsável localizou uma brochura idêntica, guardada no arquivo referente a objetos pessoais dos artistas do acervo, brochura essa doada em 1974 por Margarida P. da Silva Rangel, irmã de Helena.

Após 20 anos mantendo uma brochura com a história de uma pessoa que lhe era desconhecida, Sato passou a referir-se à autora como “Dona Helena”. A dita brochura, aliás, por si revela especial carinho da família de Dona Helena pela artista. O que provavelmente ocorreu há quase 40 anos foi que Dona Helena, já idosa, redigiu à mão suas memórias até 15 de dezembro de 1965. Após o falecimento de Dona Helena, em 14 de novembro de 1966, seus familiares preocuparam-se em mandar imprimir o texto em tipografia sobre papel chambril de alta gramatura e reproduzir alguns quadros dela em off-set, o que foi executado em dezembro de 1968 pela antiga Indústria Gráfica Saraiva S.A. (atual editora e rede de livrarias Saraiva). A encadernação simples (grampos e colagem externa das extremidades com fita de gorgurão) mostra que poucas cópias foram feitas e não houve nenhuma intenção de comercializá-las – apenas manter um registro de uma pessoa querida, digna, culta e viajada e que, algum dia pudesse ser redescoberta e valorizada por sua produção artística e vida fascinante.

Disponibilizando na internet as memórias de Dona Helena, esperamos colaborar com a divulgação do trabalho do casal Ohashi, bem como permitir a pesquisadores de arte e historiadores acesso a mais uma fonte de informações, sob uma ótica pessoal e humana, da arte no Brasil e na Europa da primeira metade do século XX, bem como da comunidade japonesa, pela qual Dona Helena revelou grande carinho e que, certamente, se recorda dela.

A seguir, reproduzimos na íntegra o texto escrito originalmente por Dona Helena. Observamos que desde 1965 houve várias reformas ortográficas do português no Brasil, motivo pelo qual alguns leitores podem estranhar a acentuação e a grafia de algumas palavras, sendo que muitas foram atualizadas pelo corretor automático.

Em função da adoção internacional do Método Hepburn de romanização do idioma japonês, acrescentamos ao lado de algumas expressões escritas por Dona Helena a mesma palavra em japonês na grafia Hepburn, entre parênteses, para facilitar a localização por sistemas de pesquisa (um exemplo é o que ocorre com a maneira pela qual Dona Helena redigiu o nome do próprio marido – Riokai. Na grafia Hepburn ele é RYOUKAI e, se usada a grafia de Dona Helena, ele não é identificado na internet ou no Japão).

Tomamos a liberdade de criar notas de rodapé numeradas com informações ou observações complementares sobre pessoas e locais citados no texto. Assim, observamos que as notas não fazem parte do texto original da autora.

Ashiya City Museum of Art & History
Hyogo ken – Ashiya shi – Japan
Tel.: 0797 – 385432 / Fax 38-5434
asbihaku@h7.dion.ne.jp

ABRADEMI – julho de 2004

Helena Pereira da Silva Ohashi

MINHA VIDA
Brasil – Paris – Japão
São Paulo:  1969

MINHA INFÂNCIA

Chamava-se Helena a menina frágil, de franjinha sobre a testa, cabelos lisos e compridos, segurando seu pai pela mão. Iam dar um passeio pela Avenida Paulista, não longe de sua casa. Seu coração estava tão feliz, que guardou por muito tempo a lembrança. Sua mãe, dona Júlia, não gostava de sair de casa; seu pai, aos domingos, tinha-lhe dó e dizia, “coitada, sempre sózinha”: seu mundo era a casa, o jardim, o gato e o cachorro.

Helena não gostava de brinquedos nem de bonecas. Lá ia “seu” Oscar com os grandes olhos e cabelos pretos, fartos bigodes retorcidos, sempre com uma expressão triste e resignada. Helena adorava o pai; também era raro negar-lhe alguma coisa. Em frente ao Parque Paulista, havia um quiosquezinho, onde um alemão vendia cerveja e limonada – sentávamo-nos nas cadeiras e víamos a cidade ao longe. Seu Oscar era de pouca fala.

Voltava-se lentamente pelo mesmo caminho: ninguém pela avenida deserta, passava-se diante de ricos palacetes, entrava-se pela rua Frei Caneca, atravessando-se os campos de barba de bode e cupinzeiros. Eu ia arrancando tudo o que era florzinha, para levar a minha mãe. Ela muitas vêzes me contava que meu primeiro sorriso foi para uma rosa, uma rosa impressa no papel que forrava o quarto. Dona Júlia era francesa de Bordeaux, seus olhos verdes e seu cabelo prêto davam-lhe caráter, era expansiva e alegre, gostava de música e tinha boa voz.

Eu rabiscava desde a mais tenra idade: aos cinco anos já desenhava figuras de perfil, com olhos de frente; meu pai achava graça nesses desenhos primitivos e dizia: “um dia serás pintora”.

Recebíamos, poucas visitas: meus pais eram muito retraídos. A família do lado paterno habitava o Rio e a do lado materno, a França. Fui filha única durante muitos anos. No casarão que habitávamos à Rua Augusta, 159, a vida não era divertida.

Helena era uma criança tímida e anêmica, com seus grandes olhos escuros, fartas sombrancelhas unidas na testa como as de seu pai; morena e feia de traços. Dona Júlia não queria que brincasse com outras crianças, dizia ela para não adquirir maus costumes; meu pai detestava barulho: gritos, pulos, correrias. Ele era calmo e pouco expansivo e minha imaginação tinha que arranjar meios de se distrair. O jardim constituía o meu campo de ação, vendo flores, insetos, brincando com o gato. Helena adoecia fácilmente: toda febre subia alta: logo lhe era ministrado o célebre remédio da época, calomelano, droga que produzia verdadeiros malefícios para o corpo e principalmente para os dentes. Ficava, às vêzes, dois dias sem beber uma gota d’água para que o remédio fizesse efeito.

Os motivos de conversa entre os pais de Helena não variavam, giravam, sempre, sobre projetada viagem à França. Nessa viagem tencionavam ver a Exposição Universal e visitar os pais de dona Júlia. Helena conheceria, então, seus avós, que moravam em Dax, perto de Bordeaux, onde dona Júlia tinha nascido. Rever a França, que maravilha! – “Seu” Oscar não perderia um minuto: iria a Paris ver a exposição; revigorar seus sonhos de arte e realizar novos trabalhos. Dona Júlia e Helena poderiam ficar com seus pais, mas para isso precisava-se resolver vários problemas. A casa era um estorvo a êsses projetos: mobiliada com gosto, a maioria das coisas vindas da França, tapetes, cortinas, roupas de cama e mesa, todas em fino linho, porcelanas, cristais. Como deixar essas coisas?…

Procuraram alugar a casa a pessoas de trato: apareceram vários pretendentes, mas o que mais agradou a dona Júlia foi um médico, Dr. Correa, que morava com uma velha governanta. Prometeu êle tudo o que os pais de Helena desejavam, trato rigoroso de tudo, inclusive do cachorro, dos peixinhos, e do belo jardim. O aluguel era elevado. Os aluguéis deveriam ser depositados no banco, todos os meses, e a entrega da casa na volta do sr. Oscar. Esse foi, então, o inquilino preferido.

“Seu” Oscar andava falando e dando ordens, tinha-se quebrado a quietude habitual. Um dia chegou dizendo “comprei hoje as viagens no navio francês “La Bretagne”. Uma madrugada, Helena foi sacudida do sono pela sua mãe, “anda depressa, precisa-se ainda tomar café e vestir”, todas as malas já estavam na porta, veio um carro nos procurar e nos levou à Estação da Luz. Depois de atravessar Santos, sujo e quente, estávamos embarcando no “BRETAGNE”, velho cargueiro, movido metade a carvão e metade a velas. Foi transformado em navio de passageiros dada a grande escassez de navios.

O primeiro porto foi o Rio de Janeiro, ficou aí uns dias, o que deu aos pais de Helena a ocasião de visitar a família. Foi uma impressão que Helena nunca iria esquecer, quando entrou na modesta casa de seu avô. Num dos quartos, um homem de barbas brancas, velho, doente, estava entrevado numa cama, sem poder se mexer, todo paralisado, queria falar, não podia, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Todos choravam; era o padrasto de “seu” Oscar, homem bom e que meu pai estimava; muito o entristeceu vê-lo nesse estado. Helena recebeu muitos mimos de suas tias e conheceu seus primos. De novo o BRETAGNE levantou âncora rumo à França, levou um mês para chegar até Marselha, ficamos uns dias nessa cidade para seguir a DAX. Helena ía conhecer seus avós maternos.

Foi grande a alegria: todos fizeram muitos mimos à netinha do BRASIL. Dona Júlia não foi visitar sua irmã Marie Louise, estavam de mal há muitos anos. A avó era baixa e gorda, chorava com frequência. Um ano se passou bem depressa, o Inverno já estava se aproximando, o frio, os dias curtos e meus pais resolveram voltar. Helena, que se lembrou tanto da viagem de ida, pouco ou nada reteve da volta.

No Rio, ficamos uns dias; o padrasto de “seu” Oscar tinha falecido e minha avó achava-se sózinha e sem recursos. Dona Júlia, que tinha bom coração, convidou-a a vir morar em São Paulo conosco, o que ela aceitou. Os pais de Helena estavam bem apreensivos a respeito da casa pois o inquilino não escrevera uma linha sequer. No banco, nada havia depositado. Foi grande e amarga a decepção quando viram a casa toda fechada; da rua viam-se os capins crescidos que invadiram o jardim e o pomar; foi preciso pular o muro e arrombar a porta. Dentro, tudo estragado e vazio. Vieram a saber que êle logo vendera os móveis e tudo o que haviam deixado, em seguida tinha alugado a casa e recebido os aluguéis. Ninguém sabia de seu paradeiro. Um ladrão, êsse dr. Correa! Foi-se morar na casa suja e vazia. “Seu” Oscar não tinha dinheiro, foi preciso comprar tudo de novo. Dona Balbina de Jesus estava longe de compreender os sofrimentos de seu filho e de dona Júlia: ela queria viver sua vida como tinha sempre vivido. Logo dona Júlia começou a pensar na tolice que cometera em convidar sua sogra a morar junto. Dona Balbina guardava ainda os costumes das Sinhás, filhas de fazendeiros, que tinham escravos para tudo, como criação. Preferia viver no desleixo a limpar seu quarto; a asma de que era atingida fazia muitos anos, não lhe tirava o gosto da vida. Durante o dia lia romances; fumava, com uma escarradeira ao lado e esperava o doceiro passar, comprava pela janela de seu quarto cocadas e doces que comia com café e queijo.

A mãe de Helena, que tinha tido uma educação e costumes tão diferentes, não se conformava com os caprichos de sua sogra. E dona Balbina, um dia, foi levada à estação, para ficar com suas filhas no Rio de Janeiro – foi a melhor solução que acharam.

Já era tempo de pensarem na minha educação escolar. Eu já sabia ler quando entrei pela primeira vez no grupo escolar do Bexiga. Meu pai tinha me comprado um chapéu de palha “Jeanbart”, de abas levantadas e duas fitas pendentes nas costas. Tinha também uma mochila para por os livros e o lanche.

Fiquei atonita quando entrei na aula, ao ver tantas crianças. Eu nada compreendia das lições da professora Enriqueta. Às três horas terminava e saía-se aos sons de cantos patrióticos. Eu não iria ficar muito tempo nesse grupo – era tímida e bobinha, as outras meninas me achavam sem dúvida diferente e me batiam, por não ter traquejo de conviver com outras crianças. Voltando para casa, subiam-se, e desciam-se morros, no caminho havia riachos. Uma ocasião eu ia na frente com uma coleguinha e os irmãos dela atrás, uns moleques terríveis. A um dado momento quando eu estava sobre uma tábua atravessando o riacho, êles, rindo, me empurraram e lá fui eu com o meu vestido branco que ficou vermelho. Quando cheguei, minha mãe me repreendeu severamente, pensando que eu tinha brincado com os moleques. Fiquei tão sentida com essa injustiça, que logo me veio febre alta: era catapora. Nunca mais voltei a essa escola.

Por algum tempo continuei a minha vida de antes, desenhava por toda superfície que encontrava, meu pai achava que eu tinha jeito. Agora havia um colégio na esquina da Avenida Paulista e rua Augusta: chamava-se Colégio Inglês. Os diretores e professores eram todos londrinos; meu pai queria que eu aprendesse êsse idioma e fui matriculada nessa escola. As alunas eram de ricas famílias que moravam na Avenida Paulista, Matarazzo, Carlos de Campos, Castelão. A mãe dessa menina era uma rica viúva, dona da melhor confeitaria da cidade. Beatriz era respeitada entre as meninas – trazia sempre bombons de chocolate, que distribuía entre elas. Ali havia as maldades do mundo em miniatura: eram más, orgulhosas, mentirosas. Diziam “em casa tem oito criadas”, outras tinham seis, cinco, quatro e chegava minha vez. “O que faz seu pai?” Eu dizia “é pintor”. Diziam elas, “pintor de parede? Por isso é que você é uma boba. Quantas empregadas tem na sua casa?” “Uma”, respondia eu. “Mas então é casa de pobre?” Saía chorando e apanhando. Quando elas brigavam entre si e rasgavam os vestidos, era sempre Helena que era repreendida. Essa escola fechou devido aos diretores se entregarem ao vício da bebida: corria a notícia de que a Madame era encontrada caída no chão, dizendo asneiras. É claro que saí dalí sem saber nada de inglês.

Meus pais tinham alugado um velho piano Pleyel e eu continuava os estudos com a professora do colégio, dona Nicota, verdadeiro massacre, me deformando a mão, durante anos, e não me ensinando solfêjo. Eu tocava de ouvido.

Passei, uns tempos sem colégio. Meu pai me dava uns modelos para copiar – eram desenhos de cabeças suavizadas e macias, sombras feitas ao esfuminho; meu pai sempre se zangava com minha falta de cuidado e pressa em terminar. O outro colégio ficava longe, em Higienópolis. Um breque vinha buscar as alunas em suas casas. Eu devia me achar na porta já arrumada, pronta para subir, mas encontrava sempre um meio de me atrasar. O carro já estava longe, quando eu saía da porta. Era um colégio que dava aula de inglês. Eu cursava o primário: estudava as lições. Estava gostando do colégio, mas, certa vez, para me esmerar num trecho bem decorado de História do Brasil, em que constava que os portuguêses cultivavam cana e eu, ao dizer que os portuguêses tinham plantado muito açúcar, todos riram, inclusive a professora, o que me envergonhou demais e não mais estudei as lições. quando era interrogada não respondia, de mêdo de dizer alguma bobagem. A cada fim de aula cantavam-se hinos protestantes.

Fiquei pouco tempo nessa escola; meus pais falavam em ir para a França, sonho permanente de meu pai; seu Oscar, que vivia na arte dêle, sacrificado em São Paulo. Meus desenhos não o satisfaziam; no piano, eu batucava de ouvido valsas, polcas. A moda me despertava interêsse – gostava de vestir minhas bonecas de moças e preferia a companhia de meninas mais velhas do que eu.

Às vezes meu pai me levava ao circo; a bailarina sobre o cavalo me extasiava – como seria feliz se estivesse no lugar dela!

Mas das impressões de que até hoje me lembro, foi a viagem que fiz com meu pai ao Guarujá. Fomos pela nova linha de trens que saía da Estação da Luz. Os carros eram novos e as poltronas de palhinha estavam estreando. No alto da serra o trem parou para se tomar café e comer sanduíches, que coisa formidável ver os grandes abismos, com suas verdejantes florestas, e o mar, então! Eu estava muda de tanta emoção: era a primeira vez que o via de tão perto…

Guarujá, nesse tempo, só tinha um hotel e raras casas, afastadas umas das outras, alguns troles parados e pouquíssimos visitantes. Nesse dia, o mar luminoso e verde vinha morrer na alva praia: eu corria, aturdida, apanhando conchas, que amarrava num lencinho. O dia estava radiante de sol e luz. “Seu” Oscar fretou um breque para ir aos rochedos das Tartarugas. Esses rochedos ficavam no alto das pedras escuras. Lá de cima via-se todo o mar, com seus fortes rugidos e o bater das ondas em fúria sobre as pedras. Viam-se enormes tartarugas, que mergulhavam como nas priscas eras. Nunca me esqueci dêsse passeio tão lindo, que encantou minha infância.

Apesar de terem nascido católicos, meus pais não eram crentes nem praticantes: “seu” Oscar sempre se dizia livre-pensador: minha mãe ia à missa uma vez por ano no Domingo de Páscoa. Os cantos enchiam-lhe a alma de emoção. Dona Mariquinha Paim, uma das raras amigas de minha mãe muito devota, de cara redonda, óculos, cabelos puxados e sorriso beatífico, sempre de prêto, com sua capa cheia de babados, segundo meu pai, era, de longe, um padre perfeito. Ela, sempre dizia sorrindo: “coitado de “seu” Oscar, tão acanhado, tão modesto”. Meu pai a detestava. A visita foi para pedir a dona Júlia que deixasse Helena fazer a primeira comunhão na Igreja do Espírito Santo, que ficava num morro, atrás de nossa casa. Sinhá, a filha dela, que tinha a mesma idade que eu, também ia cumprir êsse dever religioso; minha mãe consentiu e eu ía ao catecismo com a criançada do bairro, aprender os mandamentos da lei de Deus. Nada compreendia de semelhantes histórias.

No dia da festa, estava feliz ao me ver toda de branco, com sáia comprida, véu, a grinalda; minha mãe me beijou com lágrimas nos olhos. Meus pais se vestiram bem, fomos os quatro, minha irmã Margarida, linda como uma boneca, de touca de gaze e vestidinho de sêda branca. À tarde fomos fazer visitas e no fotógrafo Wolsac, para perpetuar a lembrança dêsse dia, parou na nossa porta um belo carro cupê todo forrado de cetim, puxado por dois cavalos brancos.

À frente de nossa casa morava uma numerosa família italiana; tinha uma menina que sempre vinha falar comigo através da grade do jardim; ela era sorridente e alegre; pouco a pouco foi-se infiltrando em casa e minha mãe nada dizia. Florentina era seu nome, vermelha de rosto, de olhos arregalados, sempre contente, declamava e me dizia: “Entre no Externato São José”. Ela já estava num ano adiantado e isso muito influiu para entrar nessa escola, onde fiquei alguns anos. Meu pai ensinava aquarela a uma freira francêsa, irmã Otávia e a uma professora, dona Augusta; elas tinham muita consideração por meu pai dêsse favor pois êle não ensinava, tinha horror a alunas. Devido a isso a madre superiora sempre me punha em classes muito adiantadas, que eu não podia seguir.

Meus pais venderam a casa da rua Augusta e fomos temporáriamente morar na rua Barão de Iguape, numa pequena casa nova. Foi preciso vender quase todos os móveis, para poderem caber. Nessa casa, há alguns anos meu pai era professor do Ginásio do Estado: êle sempre se queixava da lonjura da rua Augusta; pois tinha que tomar duas conduções. O Ginásio ficava em frente à Estação da Luz. A nova casa que estavam construindo na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, ficava num terreno fundo de alguns metros, até chegar ao nível da rua. Tinha dois andares. Meu pai fazia grandes quadros, sobre a História do Brasil e trazia do Instituto Histórico documentos e livros. A vida de Anchieta muito influiu no meu espírito e uma espécie de misticismo me invadiu; começava a achar os sacrifícios belos e o sofrimento uma chama a se oferecer a Deus…

Minha mãe tinha caído em profunda neurastenia; nada mais a interessava e as ideias mais lúgubres tinham-se apoderado dela. Meu pai, vivia ocupadíssimo; Ginásio, retratos, quadros, decorações. Andava ríspido e de mau humor. Eu frequentava o Externato São José. Sempre fraca, pálida, estava me transformando numa meninota: minha única amiga era minha irmã. Apesar de ser muito mais velha brincava com ela. Instalados na nova casa, comecei a me interessar sériamente pelos conselhos de meu pai: foi o início definitivo de meu gosto pela arte. Comecei a empenhar toda a minha paciência em copiar os modelos que meu pai me dava; num ano fiz consideráveis progressos. Com dezesseis anos copiava na perfeição os modelos mais difíceis de pasmar meu pai, ficava o dia todo desenhando com diversos lápis, miolo de pão. Meu pai mandava enquadrar os melhores, o que muito me lisonjeava.

Morávamos na parte de baixo da casa, sem frente para a rua; meus pais tinham receio que me viesse a ideia de namorar; de vez em quando minha mãe falava sobre as moças indignas que namoravam, a coisa mais feia que podia acontecer; essas moças nunca se casariam, já estavam perdidas. “O contrário da verdade” eu ouvia essas advertências num silêncio completo… Às vezes ela me dizia que os homens eram maus e que o casamento era a escravidão. Estava me inculcando uma mentalidade especial, de que levei anos para me libertar. Nunca pude ter os vestidos que sonhava; a moda estava nas etaminas de fundo branco com impressões de buquês de flores, alegre e juvenil; meu pai dizia que chamava a atenção; quando saíamos êle tinha horror que olhassem para êle. Sempre passava por ruas de travessa para não ser visto, não gostava de festas nem convívios, era reservado e tímido. Seu grande prazer era só seu trabalho; domingos ou feriados êle ficava o dia todo pintando. Nunca fui a reunião ou festa alguma. Todos os dias eram iguais naquele casarão mal repartido, sem janelas para a rua. Eu procurava ter uma vida diferente, na minha imaginação de adolescente, desejava outras alegrias. Em casa não havia livros; meu pai comprou depois uma rica coleção de cinco livros de arte: eram reproduções em cores de quadros de artistas de renome. Eu ficava apaixonada por essas obras e ficava longamente apreciando essas reproduções; tinha também comprado reproduções de grandes decorações em branco e prêto. Não me era permitido ler o jornal, mas eu tinha arranjado meio de ler os romances que O ESTADO DE SÃO PAULO publicava e de que “seu” Oscar era assinante. Seguiam-se êsses romances em vários meses; durante o dia eu ía vigiando o jornal, por último à noite era a criada que lia; eu retirava e disfarçava, levava o jornal para meu quarto e lia à luz de vela. Assim pude conhecer belos livros de Alexandre Dumas, A Dama de Monsoró, Catarina de Médicis, Henrique III, O Colar da Rainha, ficava maravilhada com as intrigas e esplendores da corte da França, ali havia histórias de amor, mas na minha ingenuidade, pensava que êsses fatos só tinham existido em épocas passadas.

Eu ia desenhando sempre na esperança de poder um dia usar as tintas, que eu adorava, meu pai não queria e dizia sempre que o desenho era a base de tudo, que êle tinha desenhado durante muitos anos na ESCOLA DE BELAS ARTES do Rio; mas um dia êle amoleceu e eis-me com a paleta de aquarela na mão. Foi um dia feliz êsse que comecei a pintar com água; nunca pensei que fosse tão difícil, medir a quantidade de água certa, não deixar secar e nem molhar demais, rapidez e acêrto, eram coisa bem diferente do que eu sabia fazer; meus olhos se deliciavam nas cores delicadas e vivas.

Chegou a notícia do falecimento de minha avó na França, entraram pela primeira vez os vestidos de lã preta enfeitados de fosco crepe prêto; minha mãe, que já andava neurastênica, agora tinha um bom motivo para piorar. Nem bem fazia um ano, que estávamos mergulhados no prêto, morre o avo. Mais outro ano de tristes roupas, depois foi minha mãe; quatro anos de toda a minha tenra mocidade a cumprir um dever absurdo, inútil, cruel.

Passávamos os três meses de férias em SANTO AMARO, numa enorme chácara, a casa tinha vastas peças, uma longa varanda, que tomava toda a fachada, ornada de colunas estílo coríntio, dava uma vaga idéia de um templo grego. Tinha um grande jardim na frente e vasto pomar nos fundos: uma profusão de goiabeiras, ameixeiras, laranjeiras e caquizeiros. Era uma abundância de frutas nas árvores pelo chão. Eu, Margarida e minha mãe fazíamos longos passeios, meu pai trabalhava nas composições para os painéis do Teatro Municipal; os desenhos eram passados no papel, aumentados maior que o natural; servi de modêlo para quase todas as figuras de suas composições. A principal delas era o teatro grego ambulante.

Por essa época comecei, do natural, desenhos, aquarelas e pintura a óleo, objetos, flores, frutos; a paisagem foi bem mais tarde, eu estava feliz com o cheiro das tintas, e de mexer nas tintas e cores.

seu aluno J. Marques Campão estava também passando uma temporada em Santo Amaro com sua família; êle vinha com frequência, meu pai e êle trancavam-se numa das peças e ficavam horas pintando. Um modêlo que êles tinham achado em Nho Quim, ótimo caipira que se prestava a todas as poses conquanto não precisasse trabalhar. Depois da viagem que “seu” Oscar fêz a Belém do Pará em 1910, seus sonhos iam se realizar, ir à França. A maior tristeza, que êle se queixava sempre era o meio mesquinho e refratário à  arte, em que vivia em São Paulo.

Foi feita uma exposição de meus trabalhos em casa, no “atelier”. O sr. Freitas Valle e mais alguns amigos acharam que eu merecia a BOLSA DE ESTUDOS para ficar em Paris; nesse tempo era assim que os pensionistas íam para o estrangeiro; a mesada era minguada, trezentos francos por mês não davam nem para pagar uma pensão e era por três anos. Todos êsses acontecimentos me optaram que me tiravam de minha monótona vida; toda a minha exuberância e paixão se concentravam nos estudos, tudo me obrigava a criar um mundo à parte, que só eu conhecia. Os preparativos da viagem foram se acelerando, o piano e as mobílias vendidos. Eu saia com minha mãe e Margarida, para fazer compras de roupas e acessórios; usavam-se uns colêtes que partiam dos seios até os joelhos, punham o busto em relêvo e proeminência, achatavam o ventre, salientavam atrás, seis ligas prendiam as meias, ficava-se com o corpo rijo como um estojo e para completar usavam-se as saias “entravés” com uma estreita barra à altura dos joelhos, que impediam de andar, precisava-se de muito cuidado para não cair. Os chapéus eram enormes e enterrados na cabeça; tive um branco, com duas asas abertas na frente: parecia Mercúrio, o deus do comércio. E aproveitava para escolher feitios na moda, fiz questão de ter as saias que impediam de andar.

Em março de 1911, fomos tomar o vapor no Rio; por essa ocasião conheci minha avó, eu era muito pequena quando ela passou uma temporada em São Paulo e não me lembrava mais dela, uma velhinha sêca e miúda, que vivia num subúrbio do Rio, com uma filha solteirona, tia Robertina. Fomos visitar as outras duas tias e conheci meus primos e primas pela primeira vez. Chovia torrencialmente quando subíamos as escadas do navio holandês FRÍSIA, chegando lá em cima com nossas roupas totalmente molhadas. A viagem foi relativamente boa porque não ficamos doentes; à passagem do Equador houve a tradicional festa; à tarde, diversos jogos em que as crianças e moças tomavam parte; minha mãe não quis que fossemos; à noite houve um grande baile; meus pais pediram a janta mais cêdo para que eu não presenciasse semelhante espetáculo, poderia me despertar idéias para coisas depravadas, como por exemplo, namorados. Eu era uma moça tímida, que estava longe de pensar em tal coisa. Fomos para o cubículo, que era nosso camarote. Vinte dias e estávamos em CHERBOURG, fazia frio e ventava.

Paris me decepcionou muito, achei escuro, suas casas todas iguais de cor de cinza, onde as roupas pretas dominavam no povo; só mudei de parecer quando pela primeira vez entrei no Museu do LOUVRE. Fazia frio em abril, às árvores dos parques, com seus galhos hirtos e pretos não era alegre; foi só com o sol, que começaram a desabrochar uma folhinha cor de alface… Com nossas roupas leves, vindas do Brasil, tiritávamos, meu pai dizia que não estávamos vestidos como lá e que era por isso que chamávamos a atenção, coisa que o punha de mau humor. Minha mãe sempre se sentindo mal, pouco falava, ouvia rumores que logo íamos ter um irmãozinho. Não podia crer tamanha desdita, eu não gostava de criança, aí sim que ía ficar prêsa de novo em casa. Estávamos num hotelzinho de MONTMARTRE, o quarto era frio e escuro, Margarida ficava comigo e êles saiam a procurar casa. Minha mãe gostava do campo e fomos morar num arrabalde de Paris, Sartrouville, perto da Maison Lafitte, na linha de trem St. Lazare, longe de tudo, e de Paris. A primeira coisa que peguei, chegando ao chalé, foi a febre escarlatina. Começou como forte resfriado e no dia seguinte estava cheia pelo corpo inteiro, de manchas vermelhas, febre de quarenta graus, quase morri, os médicos não sabiam o que eu tinha. Meus cabelos caíram todos e fiquei um mês acamada, só tomando leite. Margarida também pegou, mas como eu era grande, foi essa doença para mim, muito mais grave; minha mãe estava com seu ventre volumoso. Só quando começou a fazer calor em junho, é que recomecei a sair com meu pai; minha mãe ficava triste e desconsolada, sózinha, sem poder quase se mexer devido ao seu estado, sua neurastenia tinha aumentado e só falava em morrer…

Comecei o modêlo vivo pela primeira vez na Academia Julien des Passages des Panoramas; quando vi o modêlo nu, muito me intimidei. Eu ficava acanhada no meio das alunas, desenvoltas que riam e falavam entre elas; durante o repouso, em casa, eu continuava a pintar sob a direção de meu pai, natureza morta. “Seu” Oscar tinha improvisado um “atelier”no sótão. Iniciou uma série de cópias grandes, de Murillo, Rembrandt, Fragonard. – Eu ficava pasmada diante da grande facilidade e exuberância, que êle possuia; fez também uma série de quadros de gênero, modelos do natural, com costumes Luiz XV – isso me tirava o ânimo e pensava no íntimo “nunca hei de me aproximar dêle”. Mas eu nada dizia. Ele também pouco se importava com minhas idéias. Comecei no Museu do Louvre, sobre um cavalete especial num estrado, que os guardiões alugavam, fiz em pequeno croquis para depois passar em grande, “le portrait de madame Vestier”, toda vestida de cetim e rendas, “La Melancolie” de Fragonard.

Em outubro, o frio começou a apertar, eu ficava imóvel diante de um foguinho perto da lareira, o vento gelado entrava por todas as frestas da casa, minha mãe doente, nada de aparecer a cegonha, que esperavam de sde agosto; meu pai resolveu ir assim mesmo a Paris; alugou um apartamento na rue Darremont em Montmartre, quase pegado ao Cemitério Pére Lachaise – pelas janelas do apartamento só se viam enterros.

Dia 23 de novembro nasceu mais uma irmãzinha e no dia 30 dêsse mesmo mês, minha mãe morria. Para completar a tristeza, caia a neve que eu via pela primeira vez. Foi um horrível golpe me vêr face a face com a morte; eu era sensível e amorosa e como não conhecia mais ninguém, tinha-lhe excessiva amizade. O frio cada vez mais forte, dias escuros e curtos, não era consolante. Estávamos nessa extrema circunstância, completamente sós, minha mãe tendo ficado de mal com seus parentes. Eu e Margarida já estávamos com coqueluche quando fomos ao enterro de dona Júlia em Dax, onde já estavam seus pais enterrados. Lá tinham uns parentes, que apareceram, foi um enterro de gala, o padre na frente cantando pela estrada do ponto final. A recém-nascida ficou com uma ama, que a levou para a sua casa para a criar numa aldeia perto de Guillancourt.

As cartas que vinham do Brasil não eram boas: a casa da Avenida Brigadeiro Luis Antonio tinha cedido na parte dos fundos, devido aos maus alicerces, tinham aparecido rachaduras do alto abaixo das paredes, os inquilinos tinham saído e a casa estava vazia. Em dezembro embarcamos, todos de luto fechado. Eu e minha irmã tossindo até perder o folego, com a terrível coqueluche, que durou seis meses.

Depois de consertada a casa, estávamos morando nela; meu pai retomou suas aulas no Ginásio e começou as grandes decorações da Sta. Cecília. Eu estava tão aturdida pelos acontecimentos, que não pensava em arte. Um dia apareceu o sr. Freitas Valle (era deputado), contrariado que eu tivesse voltado “agora que trabalhei para o aumento das mesadas dos pensionistas e prolongar a estada lá por cinco anos”, dizia êle. Veio várias vêzes e convenceu meu pai a me levar outra vez para Paris. Margarida ficou no colégio interno, e em março de 1912 seguíamos para a Europa.

Descemos em Lisboa onde novamente ficamos uns dias, meu pai comprou uma viagem na Agência Cook para ir a Madrid e visitar todas as cidades da Itália; eu, sempre com a tosse, que não me largava e tinha ainda piorado com o frio pois a primavera na europa é o fim do inverno, sempre arrastando o luto completo com o grande véu de crepe, que descia do chapéu atrás e ia até os tornorzelos. Em Madrid, quase nada vi, ficando na cama o tempo todo; de lá fomos a Vingtimilia, para seguir a Gênova, minhas idéias iam se transformando, que por tantos anos tinham sido de obediência e submissão. Já não era tão crédula quanto antes, meu pai me repreendia, o que muito me magoava, a revolta já estava se infiltrando em mim, nunca poder fazer nada do que eu queria; para contrariar meu pai, ficava emburrada, sem dizer palavra durante horas – êle não dava pelo motivo e ficava bravo. Em Gênova, fiquei na cama com minha tosse. Em Turim e Milão comecei a melhorar, vi a grande Catedral de mármore branco na imensa Praça, as ruas do centro estreitas e movimentadas, a Ceia de Cristo de Leonardo da Vinci. Resolvi teimosamente comprar uma lembrança em cada cidade percorrida. Meu pai não estava de acordo, daí saiam palavras ásperas, era frequente entre nós a desinteligência.

Em Veneza ficamos uns dias; achei uma maravilha essa cidade apesar de não estar preparada para apreciar tanta beleza; eu me prometia voltar um dia a êsse país de fadas. Fomos a Murano, fábrica famosa que ficava numa ilha; tinha uma espécie de museu das peças que fabricavam nos séculos passados – meu pai ficou encantado e comprou muita coisa, um pote de um intenso azul marinho, um estojo com doze xícaras para café, verde esmeralda com florzinhas em relêvo sobre ouro; muitas delas iam ser quebradas na fronteira, pelos aduaneiros ávidos em descobrir fumo. Depois foi Florença – passávamos pelas ruas, meu pai fazia croquis no museu, a curiosa ponte Vecchia por dentro, de um lado e outro ourives. Em Nápoles ficamos uns dias num hotel de luxo, no cume de uma montanha; de nossos quartos descortinava-se um panorama esplêndido, com o mar azul e o Vesúvio na frente, com seu tenue filete de fumaça. Íamos comer fora em pequenos e pitorescos restaurantes, com a frente ornada de lindas parreiras. Assim que sentávamos, vinham três a quatro músicos tocando bandolim, violão e cantando as delícias da lua de mel. Eu ficava triste, desapontada, meu pai falava alguma coisa aos ouvidos dêles, que se afastavam logo. Visitamos Capri, a ilha perdida no oceano azul, com seus laranjais em flor, a gruta Azul, Herculano e Pompéia. Andamos pelas ruas compridas ruas, todas calçadas de grossas pedras, suas casas alinhadas, mas tristes e desoladas, sem telhados, sem portas, sem jardim, ruínas do terrível terremoto do ano 79 de nossa era (1).

(1) OBS.: Na época de Dona Helena não se sabia que as cidades de Pompéia e Herculano tinham, na verdade, sido varridas por uma erupção de cinzas seguida de um enorme fluxo piroclástico do Vesúvio, e não por um terremoto.

Em Roma, ficamos uns dias visitando seus belos museus, ficamos sentados uma tarde toda nas ruínas do Coliseu, vendo o que foram os esplendores da Roma antiga; meu pai fêz diversos croquis a aquarela num caderno que êle carregava sempre. Numa noite, o expresso nos levou a Paris. No consulado estavam diversas cartas do Brasil, todas com más notícias: minha irmã Margarida tinha ficado muito doente no colégio e estava na casa dos amigos Cordis e, depois, na sua madrinha Azevedo, à espera que meu pai voltasse quanto antes; na nossa casa tinham-se aberto novas brechas nas paredes do fundo e ameaçava ruir. Foram os primos Saphores do lado materno, que arranjaram para mim uma pensão familiar em Paris; minha tia Loachot devia vir de vez em quando me controlar.

Foi à s pressas que meu pai se despediu de mim me dando vários conselhos, frequentar as aulas na ACADEMIE JULIAN ou COLAROSSI, fazer umas cópias grandes nos museus do Louvre e do Luxembourg, arranjar dos professores atestados de frequência e progresso, ter o cuidado de não sair à noite, mandar os estudos pelo correio.

O quarto em que eu ia morar era todo forrado em faille cor de rosa; sobre a cama tinha uma linda colcha da mesma cor recoberta de renda, a mobília era branca. A parede da frente era toda de vidro. O prédio, novo, dava para a rua Pierre Curie, logo perto do Panteon, B. St. Michel e do Jardim de Luxembourg. Outra vida nova ia começar para mim mas eu estava tão saturada, tão atada à vida sem personalidade, que apesar de estar com dinheiro, liberdade e entregue a meus gostos, me parecia haver uma vigilância oculta e nada ousava fazer. Fiquei nessa mentalidade ainda por muito tempo; não estava preparada para ficar nessa grande capital e ter todos êsses privilégios; poderia ter aproveitado muito mais se tivesse outra orientação; sem traquejo nenhum da vida, me parecia estar ainda oprimida por invisíveis laços, e eu mesma achava que tudo o que eu fazia era ruim.

Todos os dias eu ia à “ACADEMIE JULIAN”- o professor era Chaumert, ali se fazia o modêlo vivo mulher e homem com “cache-sexe”; eu desenhava a fusain, pouco pintava, fazia as composições sobre temas bíblicos, que o professor dava uma vez por semana, conseguia ser bem colocada, à s vezes era elogiada pelo colorido. Depois mudei para o COLAROSSI – ali era curso misto, tinha também à tarde aula de retrato e curso de croquis. Ficava desanimada ao ver tantos alunos trabalharem bem, fortes, seguro do pincel e eu, naquela indecisão e timidez; trabalhavam grandes telas e pintavam com desenvoltura; pouco a pouco ia compreendendo que eu estava prêsa à s regras a aos detalhes. Trabalhava o dia todo e no estio ia estrear na paisagem, para mim dificíliama; fazia croquis no jardim do Luxembourg, à beira do Sena; quando chovia ia à s velhas igrejas St. Julien le Pauvre, e St. Severin. Comecei uma cópia no museu de Luxembourg, que tinha quadros de artistas contemporâneos, “La Femme aux Cornichons de Bail”, “Jeune Fille au Chat de chaplins”, que ia mandando a meu pai com os desenhos de modêlo vivo.

Consegui entrar na Escola de Belas Artes, no curso de Hebert; aí fiquei uns meses tudo fazendo para progredir; ali havia alunos bem traquejados, que desenhavam e pintavam admiravelmente bem. Durante êsse período de meus estudos não expus em salão nenhum, esperando trabalhar melhor para isso. Na pensão em que eu morava, conheci uma família brasileira do Ceará, cuja filha era pianista: Ester era toda sentimental e romântica, tocava bem e apesar de sua família ser muito devota iam a concertos e teatros; até àquela altura eu nada conhecia dessas coisas; Ester me procurava para irmos aos melhores concertos, e representações. Eu ainda arrastava o luto e custei a me livrar – meu primeiro vestido de soirée foi branco mas tinha um cinto de sêda roxo, luto aliviado. Achava tudo isso, no meu subconsciente, que não estava procedendo bem. Nessa pensão eu ia conhecer uma inglêsa, Miss Gertrudes, que pintava; fizemos boa camaradagem e fomos nas férias de 1914 para Veneza. Às vezes eu ia visitar minha tia-avó e minha irmã Judith, que estava em Guillancourt com a ama. Fizemos uma agradável viagem para ir a Veneza, passando pela Suíça – da janela do trem viam-se as maravilhosas paisagens, os odorantes pinheiros; passamos uma noite em Lausanne e no dia seguinte Milão, onde ficamos dois dias e depois, Veneza de meus sonhos. A pensão em que fomos ficava além do grande Canal, numa velha casa senhorial com um brasão sobre a porta – os quartos eram enormes, aclarados à noite por luz de lamparina, que projetava grandes sombras, que me gelavam de mêdo. O inconveniente era de ter-se que atravessar de barca cada vez que íamos à praça de São Marcos. Pintávamos durante o dia; eu só tinha levado aquarela e me exercitava em reproduzir os incomparáveis reflexos das casas e das gondolas sobre as águas; ainda não existiam como hoje lanchas e barcos a gasolina, que estragam tanto o pitoresco.

Um dia, ouvimos na cidade que a França e a Alemanha estavam em guerra; mas diziam: “isso não pode durar mais que uma semana” – apenas durou cinco anos. Os dias iam passando a cada vez mais uma nova nação entrava em guerra, nosso dinheiro estava se fazendo escasso, miss Gertrudes pensava em voltar para a Inglaterra e eu, que faria ali sózinha, sem conhecer ninguém e sem dinheiro? Resolvi ir com ela até Gênova, aí eu procuraria o consulado brasileiro. Eu tinha ido à Itália sem documentos e agora não podia voltar a Paris sem papéis de identidade; tive em Gênova uns dias de angústia. O cônsul arranjou por meu nome nos documentos de duas moças brasileiras que iam a Paris acompanhadas de um senhor francês. Chegando a Paris, achei outra cidade a que eu tinha deixado, as ruas ermas e tristes, o comércio quase todo fechado, só havia condução subterrânea, de vez em quando batalhões passavam ora silenciosos, ora com banda de música, que partia a alma de tristeza. Eu estava certa, como milhares de franceses, que isso ia logo terminar com a vitória da França. As poucas cartas que recebia de meu pai eram ordens para voltar, mandou-me mil francos para a viagem, mas não fui, esperando que acabasse a guerra, o que muito o contrariou; começando a vêr que ia essa guerra durar muito tempo, pedi mais mil francos a meu pai que me mandou, dizendo que desta vez me abandonaria se não viesse. Embarquei então em Bordeaux num vapor francês, perseguido até Pernambuco por submarinos alemães. Em Santos, meu pai me esperava no cais, me trouxe para casa, onde me apresentou à sua nova esposa, filha e irmã; Margarida estava com elas. Vi logo que não passavam de umas aventureiras e fiquei detestando-as. Margarida tinha crescido demais, mas estava ali sem frequentar a escola e sem nada aprender; tinham-lhe enchido tanto a cabeça a meu respeito, que ela tinha mêdo de mim e fugia quando me via. Estava eu morando embaixo, elas em cima no rés da rua, meu pai saia o dia todo e quando chegava, estava sempre de mau humor: eu ali sózinha, o dia todo na penumbra da casa escura e triste, dava tempo para pensar na minha vida de Paris. A independência que eu já tinha provado, agora era outra coisa, sem um vintém, sem parentes, sem amigos. Tinha-me desnorteado, as ideias e gosto de arte, nada de meu pai me orientar no que poderia fazer. Eu tinha horror aos retratos por fotografia, que êle me propunha. Ele não gostava da maneira mais livre, como tinha aprendido em Paris, dizia que só servia para estragar telas e tintas, que eu precisava acabar mais, e esbater, ter mais paciência; nada dêle se interessar em fazer a exposição de meus estudos – levei cinco anos acumulando tostão por tostão para realizar êsse meu desejo.

Durante êsse tempo, para fugir a um presente tão ingrato, comecei a estudar sériamente o piano, me preparei e no ano seguinte, fiz exame no conservatório, entrando no quinto ano, com o professor Wancolle, o melhor e de mais nome em São Paulo. Meu pai separou-se das aventureiras com quem vivia e fomos passar uns tempos na rua do Teatro; foi preciso o intermédio do Juiz e de advogado para tirar Margarida, elas não queriam largar tão boa prêsa! O piano me tomava várias horas por dia, eu estava feliz de poder tocar os clássicos; minha ambição era ter uma boa técnica e poder interpretar o que sentia, Beethoven, Bach, Chopin; queria pintar mas tantos eram os empecilhos que fiquei uns tempos sem pegar nos pincéis; para mim a arte era o único motivo de viver. Eu ia me mantendo com alunas de desenho e pintura durante os cinco anos que fiquei na casa de meu pai. A minha saúde era ruim, sempre lutando com um corpo fraco e doentio. Sabia que era feia de rosto: isso ainda contribuía refugiar dentro de mim mesma, onde minha revolta achava consolo… Gostava de ler, tinha um temperamento sensível e profundo, que mais ainda me fazia sofrer… Essa vida amarga e inolvidável de minha mocidade, durou bastante tempo. Encaminhei minha irmã, para a música. Ela estudava violino no Conservatório Musical. A educação da minha irmã passou a ser minha grande preocupação.

Estavam preparando grandes festejos para o término da Grande Guerra Européia, mas em vez disso foi uma terrível epidemia de gripe, dita Espanhola, maléfica e infecciosa; começou no Rio com jogadores de futebol, vindos da Europa, logo se propagou de tal maneira que foram poucas as pessoas que não a pegaram. São Paulo, por mais de uns meses, com as escolas e o comércio fechados, as ruas solitárias e ermas, só se viam as ambulâncias correndo, os próprios médicos fugiam, cada um ficava esperando os sintomas da doença, em sua casa. Fui a primeira a ter, depois foi minha irmã, e meu pai, as criadas já tinham partido para o isolamento. Vi a morte de perto: levantando-me para tratar de meu pai, recaí, e desta vez faltou pouco para chegar ao ponto final.

Em 1918, meu pai casou-se de novo, com uma moça da família Escobar; não devia durar muito essa união, que só levou três meses, vindo ela a falecer.

Esse desastre ia-lhe ser salutar, seu caráter modificou-se para mais normal.

Um dia veio visitar meu pai, um pintor alemão, que estava terminando sua exposição de pintura numa sala da rua Direita, oferecendo êsse local, que ia ficar vago. Meu pai me disse, “se eu tivesse dinheiro você poderia fazer uma exposição de seus quadros”; mais que depressa eu lhe disse que tinha economias e que podia fazer. Em janeiro de 1919, abri minha primeira exposição, minhas telas eram de técnicas bem diferentes, natureza morta, feitas antes de ir a Paris e meus últimos estudos feitos com fatura mais larga, os motivos também eram dos mais variados. Os jornais muito elogiaram essa jovem pintora portadora de muito talento mas ainda à  procura de sua personalidade; nesse tempo, os jornais não se faziam rogar para escrever sobre os artistas que começavam a se mostrar. Os pintores não formavam grupos, muitos vieram à  minha exposição, a Arte Moderna, que estava começando era muito comentada, todos diziam que essa pintura louca nunca haveria de pegar. Tenho ainda um artigo de Monteiro Lobato, sobre a mostra que fiz; êle estava nesse tempo escrevendo na Revista do Brasil.

Conheci durante minha exposição, que durou um mês, vários rapazes inteligentes, que vinham conversar comigo sobre arte, livros, eram acadêmicos de Direito e intelectuais – Rêgo Rangel, que vinha com mais frequência, foi trazendo outros, Correa Júnior, Cleómenes Campos, Arlindo Barbosa, Paulo Gonçalves; todos gostavam de literatura e música. A exposição terminada, continuaram a vir à noite, à  casa de meu pai. Sempre me recordei do salãozinho todo forrado de verde-escuro, a mobília Luiz XV trazida de Paris, o belo espêlho oval com sua rica moldura de ouro e seus anjinhos segurando guirlandas de rosas, o belo lustre de cristal, as cortinas de renda branca, o tapete verde também vindo da França, vários quadros de meu pai adornavam a sala, mas o mais lindo era o piano meia cauda Gaveau, de madeira natural beije. Essa era a única peça da casa bem mobiliada; quase todas as noites vinham nossos fãs. Era a corte, Margarida tocava sonatas de Corelli e belas Berceuses de Godard, Luiza de Azevedo as Czardas, eu fazia os acompanhamentos e tocava solos. Cleómenes Campos não resistia à emoção da Sonata ao Luar de Beethoven, arrancava-lhe lágrimas. Ninguém pensava em namoros; tudo era espírito e ideal de Arte; foram uns tempos felizes êsses para nós; eu começava a crêr que no domínio dos sonhos podia-se viver intensamente.

Meu pai à s vêzes vinha presidir nossas palestras literárias e musicais. Eu tinha acabado o curso de piano naquêle ano, tinha tantas matérias a fazer, que me atropelavam o estudo do piano, pelo qual eu tinha entrado no conservatório; fiz o curso completo de piano (7 anos) e dois anos de harmonia, me faltando ainda outras matérias e devido a isso não tirei o diploma.

Pintura de Helena Pereira Ohashi feita em Paris, em 1921

Um dia meu pai me disse, “se você quiser ir a Paris para terminar seus estudos de pintura, que ficaram interrompidos, vocês podem ir”; creio que arranjou êsse meio para se livrar da nova vida que estávamos levando. Em junho de 1920 embarcávamos no velho vapor inglês ANDES para a França; depois de uma viagem de trem de cinco horas, de Cherbourg a Paris, vendo a paisagem desbotada da Normandia, apareceu Paris, cor de cinza em todos os tons escuros, fumaça e céu embaçado. Fomos direto para a casa da tia-avó Loichot – Judith estava crescida, a prima Maria e a velha Loichot tinham-na criado em parte, desde a idade de três anos. Eu estava contente de me achar de novo nessa grande capital e de mostrar Paris a Margarida, que parecia estar decepcionada. Arranjei um apartamento no mesmo edifício na parte de trás que dava para um pátio cimentado: mobiliei-o muito modestamente e aluguei um piano. Começamos nossa vida de estudos bem economica, a pensão que meu pai mandava era escassa e dependia do câmbio, devíamos viver as três e pagar os estudos. Margarida entrou na Escola Normal de Música de Paris, Judith frequentava a escola e tinha começado o violoncelo, com o bom professor Dupuy. Eu ia à  Academia de la Grande Chaumiére, fiquei no curso livre, estudava com afinco e gosto, desenhando a fusain, pintura e óleo, já estava saindo das estritas regras; tinha nesse curso, composição sobre temas clássicos gregos e da História da França, sempre conquistava bons lugares; em casa fazia natureza morta no intuito de expor; no estio ia com minhas irmãs ao Jardim de Luxembourg e à s beiras do rio Sena; minha maneira de ver estava se transformando, já não era copiar servilmente do natural. Mandei durante anos, para o “Salon des Femmes paintres et sculpteurs”, telas que foram bem colocadas – o último envio que fiz a êsse salão foi o retrato de Margarida de vestido de veludo prêto com o violino, também uma cabeça de Pierrot; algumas revistas de arte falaram. Eis o que diz La Revue Moderne, de março de 1927: “Cette jeune et charmante Brésilienne s’attaque avec succés au portrait et a la nature morte. Fidéle au Salon des Femmes peintres o๠elle a déjà  obtenu des bons succés, Melle. Pereira da Silva nous a envoyé quelques oeuvres d’une grande distinction; un Pierrot seduisante un coin de Cheminée, aux accessoires originaux et reflet sur la glace étude extremement brillante et d’une rare perfection de tecnique”. (2)

(2) TRADUÇÃO: “Esta jovem e charmosa brasileira se investe com sucesso no retrato e na natureza morta. Fiel ao Salão das Mulheres pintoras, onde ela já obteve bons sucessos, a Srta. Pereira da Silva nos enviou algumas obras de uma grande distinção; um Pierro sedutor, um canto de chaminé, com acessórios originais e reflexo sobre o espelho, estudo extremamente brilhante e de uma rara perfeição de técnica”.

Tinha aversão pelos modernos excessivos, admirava os mestres, bons desenhistas, com bela pasta, colorido rico e espontâneo. Ainda fiz umas cópias no Museu do Louvre, La Source de Ingres, Demócritas por Coypel e uma grande cópia do tamanho natural Betsabé de Rembrandt – essa foi a última. Depois me aprimorei em fazer interiores do Museu do Louvre e do Museu de Cluny.

O apartamento em que morávamos era de peças pequenas e escuras. Não tinha meios para alugar um atelier. Eram caríssimos. Em Paris a carência de apartamentos era enorme mesmo para os francêses: muitos moravam em hotéis. Eis a razão pela qual não fiz grandes telas com figuras; meus modelos para retratos eram minhas irmãs. Era eu quem chefiava a casa e lutava com as dificuldades economicas; nosso luxo era ir ao teatro clássico no Odeon: eu e Margarida assistíamos com paixão às peças de Moliére, Racine, Shakespeare. Comprava-se os bilhetes com muitos dias de antecedência, sempre nas torrinhas. No estio ia-se à Comédia Francêsa, que ficava longe e precisava de duas conduções – lá vimos a maravilhosa Cécile Sorel nas peças de A. de Musset, o Chandelier, Carmosine, peças de Marivaux, outras modernas de Bataille. Não faltávamos a concertos de piano, de violino, recitais de dança, vimos Nioca-Nioca, bailarina indiana. Para ir a êsses espetáculos, fazíamos as maiores economias, confeccionando nossos vestidos a fazendo todo o serviço de casa. – Só no ano 1925, que fomos as três, tivemos três meses de férias em Zaraus, nas fronteiras da Espanha, numa módica pensão mantida por freiras. Ficamos lá um mês, passeando e apreciando as paisagens tão diferentes das de França.

Margarida já estava com o diploma da Escola Normal de Música, tocava de cor os belos e difíceis concertos de Bach, Mozart, Mendelsohn; a outra irmã tinha progredido no violoncelo, tocávamos belos trios. Eu era feliz nesse ambiente artístico, que enchia nossas vidas de sonho e de beleza… Em junho de 1925, Margarida deu seu primeiro concêrto na sala Gaveau com um belo programa, teve bastante sucesso.

Eu estava com uma coleção de trabalhos; resolvemos visitar meu pai, já fazia cinco anos que não o víamos e também mostrar o que tínhamos feito. Meu pai e seu compadre sr. Azevedo vieram nos buscar em Santos depois de uma viagem de vinte dias no Bage. Ficamos conversando uns dias sobre Paris, nossos estudos e do que se fazia em Paris acêrca de pintura e arte. Achei meu pai bem modificado, já não era mais autoritário e briguento como antes. Ele pensava que tudo tinha ficado como antes em Paris e estranhava que eu não tivesse feito quadros grandes e bem acabados, composições com figuras; mal sabia êle com que sacrifícios eu tinha feito o que trazia, lutando sempre com a minha falta de saúde, dores de dentes alucinantes, tumores, etc….

Margarida deu seu segundo concêrto no Teatro Municipal de São Paulo, foi um belo sucesso – ela era uma agradável moça de rosto lindo, não lhe faltavam fãs e aventuras. Era elegante, eu gostava de a ver com tudo o que me faltava.

Depois de muito esperar meu pai arranjou para fazer minha esposição no Grande Salão do Club Comercial, à  Rua São Bento, 1º andar. Tinha trazido bons trabalhos, tudo o que eu tinha exposto no Salão de Paris de “Femmes peintres et sculpteurs”, interiores do museu do Louvre, uma bela tela, a sala “du burreau Luiz XV” de 20-figura (medida), bem pintada, de efeito de luzs e colorido, tinha diversos trechos dêsse museu e do museu de Cluny, das velhas igrejas St. Julien le Pauvre, St. Severin, retratos, uma expressiva cabeça de Pierrot em tons claros, um estudo que teve sucesso, “O armênio”, publicado em cores na capa da revista Ariel de abril de 1926 também foi premiada na exposição geral de Belas Artes do Rio de Janeiro. Tinha progredido, saído da pintura escura amarrada a fórmula, estava com uma visão mais livre de colorido fresco e claro, uma técnica mais certa. Nessa época ainda se ficava um mês com a exposição aberta. Muitos artistas vinham à  minha exposição, ainda não estava generalizada a pintura moderna , os pintores, a maioria era a favor dos clássicos e o salão “Des Artistes Français” estavam nos comandos, não havia os grupos viperinos e inimigos, apenas se pronunciava o nome de Picasso – não supunham êles que era o poderoso fundador de uma arte, a mais feia e desagradável que jamais se viu; PEDRO ALEXANDRINO vinha a miúdo falar da França e de Paris, sempre com Dona Candinha, sua mulher, que não o largava; gostava de ver meus estudos que lhe lembravam a França, obcecado de um dia voltar para êsse país; habitava uma casa velha com seus metais e suas esperanças de acabar seus dias em Paris. Meu pai se lamentava por não viver na França sonho que êle nunca realizou, como desejava.

À tarde formávamos considerável roda de poetas e literatos, alguns colegas, queixando-se sempre do meio refratário à  arte, vinha sempre o mesmo tema, “agora a época não é boa, não é favorável à  venda de quadros”, que diriam êles hoje, em que a maioria dos pintores tem despesas e trabalho e que não vendem um quadro.

Já no fim do século e princípio dêste, houve renovadores, mas eram artistas de gênio e grandes como Courbet, Manet, Renoir, Lautrec, Cézanne e muitos outros, fundando uma arte cheia de seiva, livrando a pintura de um classicismo anêmico que sacrificava tudo, à técnica ficando uma arte convencional, sem poder exprimir livremente suas emoções. Infelizmente êsse benéfico movimento, iria se transformar na mais bruta anarquia, a ponto de qualquer um estar ao alcance de ser um grande pintor, incompreendido pelos ignorantes.

Minha exposição terminada, queríamos voltar à  França; Margarida seguiu antes; eu tive a má ideia de fazer uma exposição em Recife, levei umas cartas de apresentação a uns maiorais da cidade, expus nos fundos de uma loja de fotografias à  rua da Imperatriz, foi uma inédita decepção; a mulher do secretário do Interior, a quem eu levei uma recomendação era pintora, não veio à  minha exposição e nunca me convidou a ir à  sua casa; fato mais curioso foi o dia da inauguração com a banda de música da Prefeitura. Eu não queria, achando isso ridículo, mas me aconselharam a aceitar, que tudo o que era importante se abria com a banda municipal; sendo uma rua estreita e de muito trânsito, os componentes da banda tiveram que entrar na loja, que era estreita e comprida – os sons ficavam engavetados dentro fazendo um vacarme infernal. O pianista de nome mundial Rubinstein teve que aceitar essa situação, para o seu primeiro concêrto. Fiquei um mês com a exposição aberta; não vendi uma só tela. A mulher em Pernambuco era muito atrasada, as moças só saíam acompanhadas de família, as mulheres que se aventuravam sós eram mal vistas; da exposição eu ia para o hotel, encerrava-me no quarto, não saía à noite para evitar propostas imorais.

Estava feliz de embarcar no grande transatlântico holandês, todo branco, que ia me levar à França e de me encontrar de novo com minhas duas irmãs Margarida e Judith, que vieram me esperar no cais da Gare St. Lazare; parecia mentira estar de novo na Grande Capital cheia de desejo de pintar e progredir. Continuamos no nosso pequeno e escuro apartamento no primeiro andar, que dava para o pátio; o que ganhei em São Paulo, na exposição, pouco me deu e a minguada pensão que meu pai nos mandava dava apenas para uma vida modesta.

Em outubro de 1927, minha irmã Margarida casou-se com um dos rapazes que frequentavam a casa de meu pai, Rêgo Rangel, agora vice-consul do Consulado do Brasil em Marselha. Foi um belo casamento na igreja do nosso bairro, Montrouge, a 27 de outubro de 1927, o templo todo ornado de lírios e as fugas de Bach levavam para divinas regiões. Margarida estava linda de noiva. Senti muita tristeza nessa separação. Para esquecer um pouco decidi trabalhar com afinco. Fui estudar uns meses com o professor Biloul – êle ensinava na Escola de Belas Artes de Paris, tinha aberto um atelier, trabalhava num estilo claro e simples, tinha bons alunos que desenhavam e pintavam muito bem, era uma fartura clara com semi-tons delicados, não era servilmente o que se via mas o que se sentia; meus gostos iam para uma base forte do desenho, gostava de Chabas, Grum Montezim, Maxence, meu desejo era expor no salão dos “Artistes Français”, mas era tão difícil ser aceito que nem ousava enviar; tinha também fases de dúvidas, que me deixavam bem deprimida acêrca de minha capacidade de trabalho.

Fui diversas vêzes visitar minha irmã em Marselha. Ela morava num belo e grande apartamento perto do hotel de “La Reserve”; bastava atravessar um magnífico jardim para se entrar nessa mansão. Das janelas do apartamento, via-se o Mediterrâneo azul intenso, os navios ao longe, entrando no porto e anunciando sua chegada com a voz sonora da sereia. Achei pitoresco o velho porto de pescadores que tinha mais adiante, fiz diversos estudos. Fui a Martigues, encantadora ilha construída no século XVIII lembrando Veneza, hoje, cidade de pescadores e dos pintores; passei um mês trabalhando nas suas ruas, nas velhas ruas estreitas, suas casas velhas e coloridas, de um lado a outro, cordas secando as roupas com se fossem bandeirolas e estar sempre em festa; enquanto eu pintava, nas ruas ou no porto, sempre tinha a companhia de muitos gatos, em Martigues; fiz muitos estudos de mulheres de prêto remendando as rêdes à  porta de suas casas. Grupos de pintores trabalhando em suas ruas estreitas. A luz diferente do dia inspirava. Trabalhei com muito gosto e paixão, não perdi um só dia e saí de lá com a promessa, no meu desejo de voltar a êsse lugar. Conheci um pintor de nome, já velho, F. Oliver, que gostava de meus trabalhos, deu-me bons conselhos – “para compor meus estudos e pôr em relevo os motivos, devia sacrificar muita coisa”, dizia êle. Levei bons estudos de Martigues.

Chegando em Paris fui de novo à  Grand-Chaumiére; o inverno era rijo êsse ano, lá era bem aquecido e tinha belos modelos. Ao meu lado instalou-se um rapaz japonês, com uma grande tela, sorria, não sabia falar francês; no repouso entabulamos conversações por meio do dicionário, um livro grande que êle trazia no bolso e lhe dava com sua roupa preta uma vaga ideia de Pastor; levava muito tempo a achar uma palavra, e nisso a pose recomeçava… No fim da semana disse-me êle que não vinha mais, que iria pintar paisagem; então pedi a êle uns selos de sua terra.

O tempo foi passando e eis que um dia êle aparece em casa. Uns meses depois éramos bons amigos; conversávamos por meio do dicionário. Ele era calmo, de traços regulares, com sua palidez oriental, tinha um sorriso bom e encantador, mostrando uma fileira de sadios e belos dentes; lhe davam caráter fartas sombrancelhas e vasta cabeleira. Começamos a ir pintar juntos – êle trabalhava muito bem, já era um artista feito, veio a Paris não para estudar, mas para se aperfeiçoar em arte, visitando museus, galerias e expor no salão; gostava de arte moderna. Quando o conheci estava morando em Bourg-la-Reine – tinha alugado um quarto na casa de uma família de tintureiros; mais tarde, quando estivesse no Japão, iria compreender porque os rapazes japoneses iam morar em casas de família e nos arrabaldes de Paris.

Bourg-la-Reine era lindo só na primavera com suas macieiras em flor, e seus tenros verdes; fomos pintar muitas vezes. Foi êle que modificou minha maneira de ver, levando-me a exposições retrospectivas, galerias de exposições individuais: Lautrec, Cézanne, Utrillo, Pissaro, G. Valladon. Riokai (Ryoukai Ohashi) pintava magistralmente as velhas ruas de Paris e seus bairros populares, expunha no Salão de Outono sempre bem colocado, os jornais de arte falavam nos seus envios e na sua personalidade. Não media sacrifícios, no inverno rijo, saía a pintar com grandes telas, voltava exausto, mas contente por trazer uma bela tela. Falava sempre de Bonnard, Gaughin, Van Gogh: eu pouco entendia de arte moderna, que, nessa época, se expandia cada vez mais.

Yvonne Carro ficou sendo uma excelente amiga e colega; seu lindo rosto exprimia bondade; seus olhos azuis e seu sorriso, encantavam a todos que a conheciam; tudo nela era simpatia. Ela era uma talentosa pintora de flores e interiores, nos quais sempre punha uma figurinha romântica para dar vida ao ambiente. Pintava ao gosto dos Artistes Français. Foi ela que me encorajou a enviar a êsse salão, e me aconselhou a fazer grandes telas: dizia sempre que eu tinha tanto talento, colorido vibrante, que devia mandar. Foi comigo a primeira vez levar duas telas à secretaria do salão, achou que eu devia levar umas telas aos Mestres que recebiam uma vez por mês para saber qual a opinião que tinham sobre meus trabalhos. Esses professores moravam em Neuilly, Passy, Etoile, ficavam bem longe do bairro pobre e petit bourgeois onde morávamos. Na volta ela estava radiante – “Não disse? Eles acharam que tem muuito talento e que deve enviar.” Quando recebi o aviso “aceito”, chorava de alegria e emoção. Em março de 1929, meu coração batia quando entrei mostrando a carta d’Exposant, nesse vernissage que é um dos grandes acontecimentos do ano: toda a Paris intelectual, artistas, os grandes nomes da arte ali estavam; Paris chic, vi o Presidente Dumergue, Yvonne Carro me apresentou a muitos pintores de nome que ela conhecia, passamos para ver nossos envios. Fim de romance, o meu era “une petite rue de Martigues”. Querida Carro, se não fosses tu, nunca teria tido a coragem de expor nesse salão, durante cinco anos, sem nunca ter sido recusada. Quantos artistas premiados e de nome no Brasil, que nunca conseguiram entrar nesse cobiçado salão!

Essa sorte de ser aceita me fêz progredir, me deu novo impulso e nova confiança em meus envios; sentia a possibilidade de produzir um dia grandes obras. Como eu não tinha atelier nem modelos, comecei a pintar fora. Conhecia um casal de velhos, os Labrouses, que tinham um barracão com um jardim; cultivavam crisântemos para vender no dia de Finados e outras flores; a partir da primavera ao outono os dois velhos saíam cedo e ficavam lá até anoitecer. Eles consentiram que eu fosse trabalhar no jardim dêles e guardasse os apetrechos e cavalete, telas, tintas, no despêjo, o que muito me facilitou para fazer grandes telas. Que prazer pintar ao ar livre, à sombra das árvores, sobre a relva eu armava minha composição – uma composição das melhores foi “Le chapeau de paille d’Italie, La nappe bleu, Le panier de dessert”. Também enviei outras telas que conseguia fazer em casa, mais de imaginação do que do natural – “Verreries” e L’hereux berger, La coupe vert, Fayence et fruits – se eu tivesse me ocupado um pouco teria tido um prêmio com êste último, que foi muito apreciado.

Riokai (Ryoukai) expunha no Salão de Outono, Tuilleries e Independents, obtendo sucesso e boa colocação, mencionado nos jornais de arte. Com Riokai conheci a colonia japonêsa em Paris: eram sociáveis e amáveis, tive uma vida mais interessante e minha solidão povoada.

Em 1930 o professor de Riokai veio visitar Paris, hospedando-se no Hotel des Reservoirs em Versailles, antiga morada da Marquesa de Pompadour. Um homem distinto e de grande fama no Japão, fomos convidados por êle a passar um dia em Ville d’Avray, lugar lindo, cujo lago e floresta foram eternizados por Corot. O professor Okada tinha sempre uma escolta de amigos e pintores; nesse dia éramos um grupo, onde cada um pintou; eu fiz um bom estudo, a entrada da floresta, que até hoje guardo. De todos os pintores que o rodeavam, era a Riokai que êle dava preferência e o convidou para uma longa viagem no Oriente Médio – foram à Grécia, Constantinopla e voltaram pela Itália trazendo belos cadernos de croquis, feitos a pena, das cidades em que passaram. Riokai era o aluno preferido do professor Okada, êle me foi de grande ajuda quando cheguei ao Japão.

Não havia dia em que Riokai não viesse me buscar para ir a passeios, ou trabalhar fora de Paris; à noite íamos ao teatro ou concêrto. Ele adorava a música e era insaciável, gostava de me ouvir tocar os clássicos; foi um dos trechos de minha vida que mais intensamente vivi.

Em 1931, tinha sérias preocupações a cêrca de minha vida economica, meu pai não me mandava mais a minguada pensão, devido à moratória, que impedia o dinheiro de sair do Brasil; também a pensão de Riokai , que era agora meu noivo estava no fim, olhávamos para um futuro bem turvo… Em novembro de 1930, deixando meu coração com Riokai e a promessa de logo voltar, embarquei para o Brasil, levando minhas telas e muita esperança. meu pai foi me buscar no Rio; achei-o bem envelhecido, já não era mais o homem teimoso e autoritário de antes, seu atelier era numa garage à rua Bento Freitas, que êle tinha mandado acomodar, ali estavam seus quadros grandes. “Aclamação de Amador Bueno” tomava toda uma parede e outros menores de gênero, a mobília Luiz XV e o tapete verde, que era o luxo da nossa casa da avenida Brigadeiro Luiz Antonio estavam em mísero estado; tinha um armário com suas roupas, fraques, casaca, smoking, tudo estragado pela umidade, que tinha se infiltrado em tudo nesse local. Tinha-se casado pela quarta vez e morava em outro bairro. Fui para uma pensão: não conheci sua última esposa.

Durante o dia eu passava no atelier armando as telas, que trouxera de Paris, fiz vários quadros de flores e estudos da feira de flores, com figuras de uma fatura larga, impressionista, alguns feitos a espátula, dava essa maneira muita frescura ao colorido. Conheci um dos amigos de meu pai, dr. Amaral e sua esposa dona Edith, gostavam muito de pintura e vinham sempre me visitar no atelier; êles me animavam pois eu estava bem desiludida. Pedro Alexandrino vinha a miúdo, gostava de conversar comigo, sobre Paris e ver meus estudos feitos em Martigues e na Bretanha; estava bem envelhecido, escuro, magro, ligeiramente mancando para trás, apreciava muito meus envios ao Salão dos Artistas Français de cunho impressionista, bem modulados, sem contorno. Ele muitas vezes me disse que eu devia ficar, pois o Brasil precisava de uma pintora de flores; depois falava de Paris como de um Paraíso; lá, sim, é que se podia realizar, artísticamente. E com seu acento acaipirado, dizia: “Se Deus quiser ainda hei de voltar…”

Meu pai continuava sempre muito atarefado com suas aulas no Ginásio do Estado, retratos e trabalhos para exposição; sua maneira tinha se modificado, pintava mais claro e não acabava tanto, mas sempre conservava aquela base de magistral desenho; eu sempre admirei, a facilidade com que êle desenhava a figura, às vezes de cor e sem modêlo. Os amigos de antes, quase todos tinham se dispersado. Cleómenes Campos, Luiza de Azevedo, Campão e a esposa, às vezes nos reuníamos; eu tinha trazido a vitrola e à noite improvisávamos um baile – eram sempre langorosos tangos. Minha exposição foi feita na sede do Professorado Paulista – num prédio novo do Largo do Patriarca; a mentalidade já tinha mudado bem a respeito de exposições de pintura. A imprensa cada vez mais sovina em seus artigos, não divulgava como antes; apenas algumas linhas para informar que a exposição estava aberta. Minha coleção das telas grandes de Paris, todos os salões, em que durante cinco anos expus, ruas de Paris com suas carrocinhas vendendo legumes e frutas nos bairros populares os entendidos achavam que eu já era uma artista segura de seus pincéis, com personalidade e um belo futuro diante de mim; ao lado disso, mas era decepcionante o que diziam, como “ladainha” agora a época não é boa, nada se vende” mas assim mesmo ainda consegui vender alguma cousa.

A arte moderna dominava com muito cabotinismo, em São Paulo. A célebre Semana chegou com um atraso de trinta anos.

Eu só tinha um desejo, voltar a Paris. Riokai me escrevia que eu estava demorando demais. Finda a exposição, nada mais me prendia. Nesse mesmo ano meu pai me acompanhou até Santos, e ali no cais, me despedindo dêle, o abracei para nunca mais tornar a vê-lo. Chovia a cântaros quando subi a escada do Monte Olivia, navio alemão de classe única.

Em Lisboa fiquei três dias no Hotel do Rocio até tirar as bagagens da alfândega; o trem levou quase três dias para chegar a Paris atravessando Portugal e Espanha, viagem ruim, cansativa e desagradável, com suas fronteiras e alfândegas, sempre desconfiados, quebrando os objetos das malas, à procura de fumo, álcool, dinheiro em ouro, coisas imaginárias. Era noite quando o trem parou na Gare de Lion. Em casa encontrei Riokai, que me esperava; foi uma alegria única, um abraçar sem fim. Nunca mais íamos nos separar… Já sabíamos quanto se sofria. Para Riokai, as notícias do Japão não eram boas, os meios de viver em Paris tinham acabado e êle precisava voltar; eu, pouco dinheiro trazia e se não fosse a alegria de nossos corações, teríamos sérios motivos de aflição. Que fazer? Eis a angustiosa pergunta!… Estávamos numa encruzilhada. Eu iria ao Japão só se lá tivesse um emprêgo. Riokai escreveu ao seu professor de liceu, sr. Ossumi (Osumi), pondo-o ao par de meus desejos; logo veio resposta, meu lugar já estava arranjado em Tokio (Tokyo), na grande casa Matsuzakayá (3), para desenhar modelos da moda ocidental, apresentar a moda, fazer cartazes.

(3) MATSUZAKAYA é o nome de uma grande rede de lojas de departamentos, fundada em Nagoya em 1611. Atualmente conta com nove divisões, sendo as maiores as de Tokyo e Osaka, e é associada à Daimaru, empresa de distribuição de alimentos. A rede distribui uma ampla variedade de produtos e tem uma empresa associada em Hong Kong chamada Hang Long.

Dia 3 de julho de 1933, podia se ver um casal feliz, saindo da Mairie do XIV distrito, eram Helena Pereira da Silva e Riokai (Ryoukai) Ohashi que acabavam de se casar. Minha irmã Margarida e o grande Mestre, mundialmente conhecido, Aman Jean, serviram de testemunhas. Depois de ter tomado em casa uma taça de champanha, fomos para Versailles onde passamos a tarde pintando nos seus maravilhosos parques todos floridos; só voltamos quando as estrêlas começaram a brilhar. A convite de nossa tia Achalme, passamos a LUA DE MEL na casa dela em Bordeaux. Na volta um trabalho louco nos esperava, encaixotar tudo: eu tinha belas porcelanas, objetos de arte, um piano Gaveau; fizemos o sacrifício de viajar em terceira classe para poder transportar essa dispendiosa bagagem, além dos grandes caixotes com os quadros de Riokai e os meus, os livros, uma comoda Luiz XIV. Parecia que se arrancava uma árvore, cheia de profundas raízes. Fazia treze anos que eu morava nesse apartamento. Foi triste sairmos de Paris. Riokai adorava esta cidade, íamos enfrentar uma nova vida num país totalmente estranho, para mim seria duro, principalmente a língua, tão difícil e tão diferente mas como diz um provérbio antigo, o amor transpõe montanhas… Riokai foi a grande paixão de minha vida, amei-o com ternura, tínhamos muita afinidade pessoal e de gostos, sempre acreditei que êle tivesse os mesmos sentimentos por mim; fêz êle também sacrifícios para me esposar.

Em Marselha ficamos três dias, Riokai ainda pintou várias telas, levava sempre a caixa e o caderno de croquis. Tomamos o navio quase na hora de partir, o velho Kashima-Maru. Era numa bela tarde transparente e cada um silencioso e triste ouvia o coração chorar… Em trinta e cinco dias estaríamos no Japão. Os camarotes eram sujos; à noite passeavam belos e gordos ratos, mansos. A comida era péssima, mas a tripulação gentil; os viajantes eram japoneses, logo fizemos camaradagem; pintava-se, lia-se, eram novos e interessantes os numerosos portos por que fomos tocando: Nápoles, Port-Said, canal de Suez, Hong-Kong, Singapura, Changai (Xanghai) Kobe e Yokohama. Foi a viagem mais bela e interessante que fiz na minha vida.

Descíamos em cada porto; tudo era novo para mim: às vezes ficávamos sós; outras, em companhia de amigos. Riokai era ótimo companheiro. O comandante, homem simples e amável, gostava dos artistas: muitas vêzes nos convidou a ir tomar chá no seu camarote. Ele possuía um álbum, em cujas páginas pintores que viajaram em seu navio deixaram um desenho como lembrança. Riokai fêz-lhe o retrato e eu também. Não havia nos anvos japoneses aquela estrita separação de classes, como nos vapores estrangeiros; muitas vêzes passageiros de primeira classe desciam para a terceira. Os oficiais vinham nos visitar, sempre me traziam doces.

Em Nápoles, o primeiro porto em que tocamos, visitamos um belo museu de arqueologia, situado no alto de uma rua do centro. Como era domingo, tudo estava fechado. Num restaurante pitoresco, com suas latadas de parreiras, nos instalamos; logo vieram duas meninas maltrapilhas – uma batia num pandeiro e cantava, a outra dançava a Tarantella, os garções enxotavam-nas mas elas pouco se importavam. Mais adiante havia um famoso aquário, mas preferimos ir passeando pela imensa avenida beira-mar, com suas intermináveis balaustradas; o mar estava de um azul escuro intenso. Compramos uns cachos de enormes uvas do Vesúvio, parecendo ameixas. Riokai se pos a fazer uma linda vista do Castelo de Sto. Ângelo.

No dia seguinte, pela manhã bem cedo, estávamos em Port Said, Egito. Tudo estava fechado. Quando descemos do vapor, fomos andando por ruas, que pouco a pouco se animavam: homens de camisola branca, com o clássico fêz de fêltro grená e mulheres do povo, todas de prêto, com o rosto velado até os olhos, indo para o mercado. Entramos num café árabe para pintar, nos instalamos numa mesinha mas era tal a afluência de curiosos, que foi preciso a polícia intervir com casse-tête; tinham obstruído a nossa frente e estávamos ali aprisionados no meio dêles. O Kashima-Maru levou uma noite e um dia para passar o Canal de Suez: viam-se os beduínos com seus camelos, naquelas planícies intermináveis e cheias de pântanos. O por do sol dourava a paisagem. No canal só passavam dois navios de uma vez em sentido contrário; nós, que íamos ao Extremo Oriente e outro voltava para a Europa… Só se ouvia o ruído das correntes e ferragens. O dia terminou, mansamente. De madrugada já estávamos entrando no bíblico Mar Vermelho, passamos sem parar diante de um pequeno porto que levava à  Meca. o mar estava agitado, tínhamos vários dias de céu e mar, estava cada vez mais quente; nosso divertimento era pintar, ler e ver numerosos peixes-voadores. Riokai me disse: “Amanhã vamos chegar a Hong-Kong, cidade chinesa”. Que lindo colorido mostrava quando o navio foi entrando no porto, com suas montanhas violetas, os barcos chineses, com suas velas de formas exóticas, sobre o mar verde; descemos com outros passageiros, contentes de andar em terra firme; gostei de ver o denso movimento, das ruas e comércio chinês. Por meio de um funicular fomos ao cume de uma montanha – de lá avistava-se toda Hong-Kong. À tarde pintamos seu porto, mas do convés do navio. Singapura – aqui o Kashima-Maru ficou três dias; fazia um calor abafador, à  noite não refrescava, levamos os lençois para dormir no passadilho; ali ficávamos esperando a madrugada. era incrível o mau cheiro, vindo das águas podres do cais. Tivemos muita sorte de não pegar maleita. Singapura, mistura de todos os países do oriente, malaios, chineses, maometanos, judeus, japoneses, europeus, na maioria inglêses; apreciadores do luxo e do conforto, vastos gramados bem tratados para jogar tênis, golfe, um grande hotel, boate chic para os amadores da vida noturna, igrejas protestantes para as almas piedosas. O que gostei foram os telhados dos templos, uns de porcelana azul e outros verdes, seus mercados, expondo alimentos estranhos, patos e galinhas sêcas; outras laqueadas; gostam de alimentos dissecados, ovos podres de pato, etc.

O porto seguinte foi Changai (Xanghai), depois de ter navegado um dia e uma noite no célebre rio Amarelo (êle tem êsse nome devido à  sua cor lamacenta e opaca). Os cais estavam longe da cidade, custamos para achar o centro; na zona estrangeira, cada quarteirão tinha as respectivas bandeiras de seus países e sua polícia; os bancos eram guardados por soldados armados. Voltamos à  noite cansadíssimos; no camarote os ratos tinham feito das suas – levamos de Marselha alguns produtos para presentear os amigos no Japão, queijo, linguiças de Lion, presunto e Riokai tinha amarrado tudo no forro, bem no meio – pois não é que êsses infames bichos conseguiram pular e roer quase tudo?

Mais um dia de céu e mar. Numa luminosa manhã começaram a aparecer pequenas ilhas, com seus verdes cedros, pinheiros, ilhas que pareciam em miniatura, encaixadas num mar azul. “É o Japão, Helena”, dizia Riokai, que beleza, passávamos tão perto que podíamos ver os cedros e as flores. Algumas ilhas não eram habitadas. Foi dali que Riokai telegrafou à  sua família, que morava em Formosa. O irmão de Riokai, Hideo-san, já nos esperava em Kobe, com sua tia. Os parentes que moravam em Formosa, não puderam vir.

Fomos hospedados por uma noite na casa de um amigo de Riokai, violoncelista, que eu conhecera em Paris, sr. Nagai. A primeira impressão que tive chegando em Kobe não foi boa – pela comprida estrada asfaltada que ia de Kobe a Ossaka (Osaka), chamada Kokudo (4), só casas pobres, barracões de madeira desbotada, comércio sórdido. Ia saber, depois, que os ricos e abastados moravam em magníficos bangalos nas montanhas, mas devido a uma filosofia antiga, essas residências tinham à roda, altas cêrcas. Não deixavam ver a riqueza nem os belos jardins, aos pobres. Os ricos e abastados achavam imoral mostrar abundância aos que não a tem.

(4) KOKUDO significa “estrada nacional”, o equivalente no Brasil à sigla BR. Assim como existem várias BRs, no Japão há várias kokudos, mas o nome desta especificamente não aparece no texto da autora.

Sempre com seu irmão Hideo-san, bem diferente de Riokai física e espiritualmente, alto, magro, falando bem o Inglês, mas falho de sensibilidade, visitamos os maravilhosos e afamados templos e cidades de Kyoto e Nara. O último porto foi Yokohama; à nossa espera achavam-se no mais muitos amigos de Riokai, primos, tios, que êle já tinha visto do vapor e algumas japonêsas, que eu tinha conhecido em Paris. Cumprimentos de boas vindas e lindos ramalhetes de flores. Assim terminou nossa bela e interessante viagem da França ao Japão em setembro de 1933.

RECORDAÇÕES

Pelo Kashima-Maru, chegamos a yokohama nos fins de setembro de 1933. Éramos dois pintores ainda em lua de mel, muito amigos e confiantes num futuro acolhedor. Era a primeira vez que eu ia conhecer o Oriente tão sonhado; estava feliz e contente ao lado de Riokai, meu marido. Apesar de não falar a língua, percebi logo que as pessoas eram amáveis e se esforçavam por me compreender com gestos e sorrisos. Nos primeiros dias de nossa chegada a Tokio (Tokyo), nos hospedamos na casa de um amigo de Riokai, o sr. Kumagai, alto funcionário, que tinha acabado de construir num subúrbio da cidade, uma bela casa típicamente japonêsa. Logo na entrada, “guenkan” (genkan), tirei os sapatos pela primeira vez para pisar nos alvos “tatamis” de palhinha nova. Parecia que eu estava num estojo. As madeiras bem trabalhadas, perfumadas, sem pinturas, com suas colunas de tronco de cerejeira, metade embutidas na parede; grandes salas, divididas por tabiques de correr, em alvo papel decorado com discretos filetes em ouro, e moldura de laca preta; tudo numa austera simplicidade; ausência de mobília; só uma mesinha de laca com um vaso no “tokonoma”, lugar de honra. Um antigo e fino “kakemono”, pintura japonêsa, mudada em cadaa estação do ano.

Tinha, nos primeiros dias em que acordava nesse cenário, estranha sensação de me achar nesse ambiente encantador. Ficamos poucos dias na casa dêsse amigo e logo fomos morar num sobradinho de boa aparência em Assagaya (Asagaya), subúrbio de Tokio. Lá todas as residências ficam longe do centro. Andava-se quase meia hora para chegar a uma estação de trens. As primeiras visitas foram para o sr. Okada, mestre de renome no Japão, professor de Riokai, que eu tinha conhecido em Paris, em 1930. Ele morava numa bela casa, com vasto atelier ao lado, um grande jardim com as roseiras sempre em flor. Seu atelier era o centro de reunião de seus amigos e colegas. O sr. S. Okada (5) tinha sido o primeiro pintor japonês a estudar arte ocidental em Paris. Foi aluno de Corin (Collin), pintor de fama naquele tempo.

(5) OKADA, SABUROSUKE (1869 – 1939) foi um dos pioneiros da pintura em estilo ocidental (Yõga) no Japão e foi um dos fundadores do grupo Hakubakai, a “Sociedade do Cavalo Branco”, associação criada em 1896 por artistas influenciados pela arte ocidental, mais especificamente pelo impressionismo, em oposição ao Meiji Bijutsukai, que patrocinava a chamada “arte oficial”, ligada ao governo. Okada foi para a França em 1897 e estudou com Raphael Collin até 1902. Foi eleito membro da Academia Imperial em 1919; tornou-se artista da Corte Imperial em 1934 e recebeu a Ordem da Cultura (Bunka-shõ) em 1938. Pintava principalmente paisagens e retratos femininos. Foi marido da escritora Yachiyo Okada (seu nome de solteira era Yachiyo Osanai; era irmã do dramaturgo Kaoru Osanai).

O prof. Okada possuía uma bela técnica fina e discreto colorido. Simpatizávamos pelos mesmos gostos – êle apreciava as porcelanas de Sévres e de Saxe, tinha uma maravilhosa coleção de quimonos da época brilhante de Momoyama (6). Gostava de gatos, que o seguiam em bando, por onde êle andava. Adiante e atrás, era por êles escolatado. Riokai tinha grande admiração e muita amizade pelo seu mestre, homem distinto de fina educação. O professor Ossumi (Osumi) foi o que me arranjou o lugar no Matsuzakayá, morava não longe dalí; vivia modestamente, escrevia sobre antiguidades e colecionava objetos do passado.

(6) AZUCHI-MOMOYAMA, nome em japonês do período no qual governaram os shõguns ditadores, de 1582 a 1615 (ou de 1574 a 1615, dependendo do autor). O nome vem dos castelos de Oda Nobunaga (que ficava em Azuchi) e de Toyotomi Hideyoshi (que ficava em Momoyama, perto de Kyoto).

Três meses depois, comecei a trabalhar na seção de modas ocidentais no grande magazin do Matsuzakayá, fazendo desenhos de modelos, cartazes, etc. Meu sofrimento era cotidiano por não compreender, e poder falar a língua. Poucos entendiam o Francês. A maioria falava o Inglês, língua corrente no Oriente, o que me dificultava tudo, não sabendo êsse idioma que jamais consegui aprender.

Nossa casa tinha várias peças com “tatami” (palhinha em lugar de assoalho) e uma sala na frente, assoalhada, de que fiz o salão. O piano gaveau que trouxe da França, uma comoda Luiz XIV e todas as lindas porcelanas alegravam e faziam lembrar minha saleta de Paris. Vivíamos uma vida ativa e agitada, sempre pensando no futuro, que não era muito certo.

Riokai fêz a sua primeira exposição na Guinza (7), durante o inverno de 1933-34; foi muito apreciada. – Todas suas belas telas, ruas de Paris, foram expostas, mas o movimento da arte pictórica no Japão, estava todo voltado para a arte moderna. No salon oficial eram aceitos e tinham sucessos os que mais criavam monstros; também uma liga surda contra os que tinham ido à europa, estudar, inveja ou nacionalismo excessivo. Expus no Salon do mestre Okada, as telas que eu tinha enviado ao Salon de Paris des Artistes Français em 1933 – êsses trabalhos foram premiados.

(7) GINZA, “assento de prata”, nome de bairro e avenida em Tokyo, que teve origem na Era Edo (1600 a 1868) como área onde se concentravam ourives e artesãos que fabricavam moedas para o shõgun. No século XX tornou-se área de concentração de bancos e de comércio de luxo.

O frio fazia-se sentir cada vez mais rijo, acompanhado de um vento gelado e furioso. Uma manhã, quando olhei pela janela, apareceu uma paisagem toda branca, destacando num céu cinzento; os pequenos flocos de neve caíam enchendo o ar; tanta pureza, tanto silêncio nesse cenário de neve; nosso telhado estava todo branco, com espêssa camada endurecida. Nas ruas enfiava-se os pés até pelo meio das pernas para se poder andar; como tudo ia de costume, os japonêses estavam alegres por ver a neve que tudo tinha invadido. No Natal havia festas e como eu fazia reclame para essa casa, devia me mostrar em lugares frequentados pela sociedade. Passamos o Christmas no Imperial Hotel (8) – Salões em estilo inglês. Uma festa fria e rígida. Muitos adornos em papel colorido, os homens de smoking, com chapéuzinhos de papel de sêda na cabeça, cordões de flores igualmente em papel ornando o pescoço, orquestras, jazz, danças, mas achei triste. Os grandes salões em estilo inglês mal aquecidos, mal aclarados – eu tiritava com vestido de soirée branco e meu chale espanhol. Hideo-san, o irmão de Riokai, estava feliz, estreava um smoking e com a namorada ao lado achava uma alegria esta festa. Fui apresentada a muita gente de alta categoria, mas como eu só falava o Francês, pouco podia-se comunicar.

(8) O IMPERIAL HOTEL em Tokyo foi inaugurado em 1890 como marco de luxo em hospedagem estilo ocidental, com aspectos de serviço oriental. Passando ao século XX como principal hotel da cidade, sofreu várias reformas, sendo a principal a construção do prédio, que hoje é a ala histórica do hotel, projetado pelo arquiteto americano Frank Lloyd Wright. Foi do Imperial Hotel que o Imperador Hirohito fez a histórica transmissão de rádio declarando o fim da guerra e foi nele onde o General MacArthur instalou a sede do governo das Forças de Ocupação, de 1945 a 1952. Finda a Ocupação, o Imperial voltou exclusivamente à atividade hoteleira e tem hospedado visitantes ilustres e celebridades do entretenimento e dos esportes, mantendo-se como um dos hotéis mais requintados da capital japonesa.

A neve foi sumindo para dar lugar aos prelúdios da primavera; nunca pensei que fosse tão bela, tão radiosa. Foi num êxtase que vi as cerejeiras em flor; fico imensamente grata ao Japão por ter me dado essa emoção de beleza para minha arte, para minha vida. Amor também seria o presente raro e maravilhoso do Japão… Começamos a sair com nossas caixas de pintar fora. O parque Inogashira não ficava longe de casa, íamos nos dias ermos da semana fazer longas passeatas pelos atalhos, à beira do grande lago, onde as cerejeiras em flor se espelhavam. Nesse deslumbrante cenário, podia-se ver dois namorados, eram Helena e Riokai… Mais se penetrava pelos estreitos caminhos, mais denso eram os arvoredos floridos – era tão delicada a visão que apenas se sentia a brisa perfumada dêsse paraíso em rosa; floria em conjunto, saudando a primavera.

Esse ano de 1934 foi bem indeciso para nós; eu estava começando no Matsuzakayá; executava os modelos com meus desenhos, mas ainda não tinha a certeza de ficar. A vida era cara em Tokio: aluguel, condução, presentes, outra coisa que tive de conhecer, que aflige os japoneses e que lhes tira uma boa parte da receita que têm para viver – gasta-se muito para os “omiagues” (omiyage = presente). outra coisa curiosa era quando se convidava uns amigos para jantar, tinha-se a obrigação de mandar reconduzi-los de taxi a suas casas, às vezes longe de um subúrbio a outro.

Fomos ver as maravilhas dos templos célebres. a convite de uma amiga, Matcha, passamos um dia esplêndido, visitando e pintando Kamakura – paramos muito tempo diante do grande Buda em bronze, sentado sobre uma flor de lotus, de belo rosto e impassível, o olhar perdido no vasto horizonte… Os peregrinos podiam entrar em seu peito divino, por uma escadinha, à s suas costas. pintamos muito naquele dia – tenho ainda como lembrança, um croqui. Kamakura, que lugar lindo – rodeado de montanhas ora azuis, ora roxas, os belos cedros adornam os pátios dos numerosos templos que estão nas montanhas. Riokai muito se orgulhava de me mostrar as belezas de seu país; exposições, retrospectivas, de quimonos, pintura japonêsa, porcelanas, arranjo de flores “ikebana”, dança, teatro. Os japoneses conservam ainda hoje muito carinho pelos seus costumes tradicionais.

Quando queríamos europeizar nossos passeios, íamos a Guinza (Ginza), comprido boulevard, onde o comércio era feito à maneira ocidental, belas e grandes vitrines mostrando artigos estrangeiros, cafés, casas de chá, com doces à  maneira francesa. Era sempre certo Riokai encontar amigos dos tempos idos, que não acabavam mais, em cumprimentos e convites. Essa longa avenida ia dar num lugar de altas muralhas rodeadas de água e ponte pênsil. Atrás dêsses possantes muros de pedra ficava a residência imperial. O Imperador Hirohito nunca se mostrava a seu povo e êste nunca pronunciava seu augusto nome, tido como de origem divina. Nas ruas viam-se pouquíssimas mulheres de roupas ocidentais; a generalidade andava de quimono com cores e estampados segundo a idade; só as colegiais vestiam uniformes, até as Faculdades. Muito me divertia ver os estudantes com longas capas pretas, uniformes pretos, com uma fileira de botões de metal como a polícia, “guetá” nos pés (geta = sapatos de madeira), casquetes ou bonés de três bicos, alguns sujíssimos, com o tecido a se desfazer. A princípio eu me apiedava, mas depois soube que era uma honra arvorar um dêsses bonés, significava os mais estudiosos, os mais inteligentes e capazes.

O que me magoava era ser muito notada – para onde eu ia na rua, havia gente que parava para me ver, passavam-me verdadeira revista no traje e depois me fixavam nos olhos como se fosse uma curiosidade; mesmo no centro da cidade, era raro ver-se um estrangeiro; os poucos que havia habitavam Yokohama. Riokai tinha-me dito que não procurasse relações com êles; eu concordei, visto que considerava minha felicidade nas mãos de meu marido. Por êsse motivo, penetrei na vida e nos costumes tradicionais japoneses, alguns muito lindos, delicados, curiosos, bem diferentes dos nossos. Amoldei-me a muita coisa, dormir no chão, sem cama, ficar por muito tempo ajoelhada na almofada, em vez de sentada numa cadeira, me acostumar ao paladar das comidas, e apreciar os intermináveis cumprimentos.

Uma curiosidade para mim foi ver as mulheres na generalidade, carregar os filhos nas costas; as irmãs mais velhas também carregam os irmãozinhos da mesma maneira. Com uma espécie de écharpe, cruzando na frente, ficam assim com os braços livres. No inverno vestem haori (igual a “happi”) mais curto, que Kimono e que vestem por cima da criança, que se ajeita ficando só com a cabecinha de fora; as mães enfiam as mangas e parecem estar com uma enorme bossa. Achei os quimonos um encanto, mas só das moças, um traje dispendioso, principalmente as cintas (obi). Estampados de fino gosto artístico, tecidos de preço, combinações de cores estranhas para nosso gosto. Achei as japonesas muito femininas, frágeis, delicadas, vivendo exclusivamente para a família. Os homens gozando de liberdade fora de casa, mas apesar da falta de independência da mulher, notei que em quase todos os ramos, artes, ciências, altos estudos, havia mulheres. Os japonêses fazem muita questão da instrução. Todas as mocinhas frequentavam o ginásio até aos vinte anos para se casarem pouco tempo depois. A escolha do marido era ainda feita por intermédio da família, a interessada não podendo preferir livremente.

O calor estava se fazendo sentir depois de copiosas chuvas que duraram um mês; os dias quentes de julho iam torrar os lindos e ternos verdes. O irmão e a família de Riokai, que moravam em Formosa (Taiwan), vieram passear em Tókio e me conheceram; como era novidade para êles, estavam felizes pensando que estávamos vivendo em mar de ouro. Havia japoneses casados com estrangeiras, a crítica era severa para êsses casais, observando todas as atitudes das esposas – geralmente eram francesas ex-modelos ou alemãs ex-garçonetes de restaurantes, que pensando subir de classe social, tinham vindo para o oriente mas algum tempo depois estavam se divorciando. Riokai tinha sempre o bom caráter que eu havia conhecido em Paris, gostava de aliar sua arte à minha, conversar como dois colegas que se compreendiam… Aconselhava-me a ser mais livre, na maneira de me exprimir mas era difícil de me desfazer do classicismo em que fui instruída. Conseguindo me expandir numa fatura mais larga e mais vibrante, flores e paisagens já saíam de minha espátula com mais liberdade. Riokai adorava a música e o dia em que eu não estudava piano me ralhava. Uma noite tivemos a visita do professor Okada e de alguns nomes conhecidos na música, que vieram ouvir-me – toquei Chopin e Albeniz. Riokai ficava feliz quando eu tocava e me mostrava.

Setembro. Já fazia um ano que estávamos em Tókio, a luz já ia se transformando, anunciando o outono. Saímos uma manhã muito cedo, para ir a Nikko visitar o majestoso templo todo branco e ouro, bem diferente dos outros que já tinha visto. Nikko, glória do passado, pela sua riqueza e magnificência de sua arquitetura e seus famosos olmeiros centenários, que vão em fila pela longa estrada. O outono dourava a paisagem, e as folhas sêcas iam colorindo o chão de ouro e púrpura nessa orgia de cores, antes de cair na rigidez da morte… Riokai ia me explicando a história do tempo dos Shoguns, êsses grandes senhores que dominaram o Japão por séculos. Foi êsse dia uma bela recordação de minha vida. Na volta, como era longe de Tókio, fomos jantar em Assakussá (Asakusa, bairro do centro antigo de Tokyo), reputado pelo seu centro popular e seu movimento incrível de suas estreitas artérias. Hotéis, restaurantes, cinemas, casas de gueixas. Uma das coisas pitorescas eram os pequenos restaurantes, com uma enorme lanterna na porta indicando sua especialidade, suas cortinas na porta, cortadas em tiras e as serventes que ficavam na porta quando não havia fregueses. Foi em Assakussá que o terremoto de 1922 destruiu em massa casas e habitantes. O templo que se ergue numa pracinha, dedicado à deusa Kannon é, ao que me contaram, rebocado com as cinzas dos mortos do terrível seísmo que durou muitos dias.

Tivemos a notícia que Matsuzakayá ia me transferir definitivamente para Ossaka (Osaka) – tinham reformado a Matsuzakayá dessa cidade no mais moderno estilo. Foram êles que se encarregaram de fazer nossa mudança. Em dezembro de 1934, já estávamos instalados numa boa pensão perto do centro. Fui apresentada ao dono sr. Ito e aos diretores srs. Tsukamoto, Hattori, Shimura e outros. De fato era Matsuzakayá uma importante casa com elevadores dos mais modernos, calçadas e escadas rolantes, grandes salões para exposição de arte, sala para concertos com belo piano de cauda, coleções de quimonos raros, grande restaurante com piscina no oitavo andar e parque de diversões; havia lá um minúsculo santuário com um deus protetor do comércio “Oinari” (uma raposa); pedia-se a êle como devia-se fazer para ganhar… No subsolo, tudo o que eram comestíveis, encontrava-se produtos estrangeiros e dos melhores.

Fomos logo convidados para fazer exposição de nossos quadros numa das melhores salas. Era uma época em que estavam em voga as bonecas francêsas; fiz uma bela coleção delas, que expus, quase todas da época Luiz XV – mandava vir de Paris todos os materiais, as marquesas tinham cabeleiras brancas, amplas saias em sêda Pompadour ou de lindos brocados de cores suaves e todas minhas telas de Paris. Foi um sucesso de arte e de venda. Percebi que no Japão as pessoas não vinham só para vêr e criticar, muitos eram compradores de poucos meios, querendo ter um quadrinho de arte em sua casa. logo em seguida, Riokai fêz exposição de suas telas de Paris; também obteve grande êxito. Todos os anos expúnhamos juntos ou separados. Em Nagoya, onde havia outra grande sucursal, às vêzes me convidavam para ir apresentar a moda.

Fizemos nessa cidade várias exposições. Nagoya possui um maravilhoso castelo, construído sobre altas e imponentes muralhas. podia-se vêr sob o seu telhado um enorme peixe cujas escamas eram de ouro maciço; fazia a admiração dos turistas; êsse peixe era protegido por uma possante rêde. Riokai pintou êste castelo, fêz telas incomparáveis, que ficaram no Japão e no estrangeiro. Durante a guerra, o castelo, essa assombrosa obra de arte do passado foi destruída pelos incêndios e bombas do inimigo (9).

(9) O Castelo de Nagoya foi reconstruído em 1959.

Desde 1º de janeiro de 1935 fomos habitar Ashiá (Ashiya), rua Sanjo Gotanda, lugar pitoresco entre Ossaka e Kobe, afamado pelos seus milionários, que habitavam as montanhas em ricos bangalos adornados de grandes jardins e cedros verdes estendendo seus galhos em forma de para-sol; dali de cima via-se o mar, que era perto e Kobe mais adiante, lugar lindo para excursões e para veranear. Habitávamos um bonito sobradinho com jardim à  roda, havia várias árvores entre as quais uma de grosso tronco prateado, cânfora, em japonês “shono”, tão útil na medicina; depois da chuva sentia-se seu forte odor.

Riokai sabia que a minha paixão eram as flores – uma primavera conseguiu êle mostrar um tapete de tulipas das mais brilhantes cores; fiz algumas telas com êsses inéditos modelos, também jacintos com as suas folhinhas perfumadas e crespas.

Da nossa casa, um estreito corredor ia ter a Sanjo Gotanda, e esta curta rua ia desembocar numa larga estrada asfaltada, chamada Kokudo (vide obs. 4), que começava em Kobe e terminava em Ossaka, muito animada por toda sorte de veículos, automóveis, onibus, bondes, caminhões e à s vêzes carros de bois; logo fomos apresentados a diversas famílias importantes de Ashiá, os Yamamoto, Kikuti (Kikuchi), Fujita, Matsui; as filhas vinham aprender pintura com Riokai e piano comigo; eu só ia três vezes por semana a Matsuzakayá, e quando apresentava a moda todos os dias, ainda me restava tempo para pintar e estudar. Muitas vezesíamos à ilha de Awaji, toda rodeada de seu mar azul intenso, seu templo e seus típicos telhados; Akashi, com seu belo castelo dando para um parque e seu velho porto de pesca, muitas vezes inspirou Riokai. Todos os anos íamos fazer excursões longe, voltávamos no dia seguinte; Yoshino foi uma das primitivas capitais do Japão, conservando ainda a atmosfera do passado; como essa cidade estava situada em altas montanhas, o inverno era rijo e longo; a primavera começava a florescer em maio. Numa estaçãozinha ao pé das montanhas entrava-se numa grande cesta fechada que ia devagarinho suspensa por uma longa corda de aço movida a eletricidade, até chegar ao cume; à s vêzes parava no meio do trajeto, devido ao vento, e apreciava-se os abismos e precipícios que davam arrepios… Estava no centro dessa antiga e curiosa cidade, uma estreita rua calçada de grossas pedras; dos dois lados hotéis típicamente japoneses, suas entradas caprichosamente arranjadas com suas criadas de aventais por cima do quimono; essa rua levava a gente a uma enorme porta toda de laca vermelha, telhado de pontas recurvadas; subia-se por uma alta e empinada escada de pedra para entrar nessa solene porta guardada por dois diabos de pedra, de carrancas ameaçdoras. Diziam os antigos que era para afugentar os maus espíritos e proteger o deus puro e inocente que estava no templo além da porta. Riokai celebrizou êsses sítios e essa porta dos deuses numa tela que foi reproduzida em cartão postal, em cores. Pintei várias paisagens de montanhas com cerejeiras, seus verdes tenros e variados me encantavam. Todos os anos íamos pintar; os hotéis em que ficávamos eram inéditos. Às seis da manhã, as criadas abriam as grandes janelas de correr, deixando entrar o ar gelado e fazendo uma algazarra louca, com seus espanadores, batendo em tudo e tirando a poeira imaginária; tinha que se sair do colchão a muque. O próprio cobertor era um confortável quimono acolchoado de sêda, que é leve e muito quente; enfiava-se os braços novamente nas mangas no calor do corpo, em seguida vinha o banho e entrava-se numa espécie de piscina ao lado, mergulhava-se na água quase fervendo. Os japoneses dizem que é bom para a saúde e ativa a circulação; de fato, sai-se de lá vermelho como camarão cozido. Esperava-se o almoço que vinha numa enorme bandeja e numa espécie de marmita mas em laca, as caixinhas quadradas, contendo diversos alimentos, arroz com enguia muito gostoso, sopa (otsuyu), peixe grelhado, “sashimi” (peixe cru em fatias muito finas); também vinha “takuan”, um nabo amarelo, de cheiro bárbaro, nunca pude me acostumar, o quejo roquefort seria um jasmim perto – custei para poder comer “sashimi” (peixe cru), mas é realmente um excelente prato; no fim dêsse grande almoço vinha o célebre “Otchá” (chá japonês), sem açúcar, que durante o dia toma-se várias vêzes numa xícara sem asa.

Riokai gostava do movimento moderno em arte mas equilibrado e eu, que era adepta da arte clássica de meu pai e continuando em Paris a pintura cheia de regras e restrições, ia deixando para trás o que eu já tinha feito; procurando me expandir numa visão mais livre para dar curso à  minha personalidade, fiz estudos mais vibrantes, mais simples, flores, paisagens, a espátula procurando fugir do banal do “mil vêzes feito”; via quanto era difícil essa arte que se sente e que some quando se quer fixá-la… Riokai era meu conselheiro e eu tinha fé no seu parecer sincero, sempre me dizia para fzaer como êle pura arte e não produzir pintura para leigos; gostávamos de apreciar nossos trabalhos depois de feitos.

A vida que levávamos era bem ativa, tínhamos convites para as festas e casamentos, nas casas dêsses riquíssimos amigos; consideravam-nos como artistas e professores de seus filhos. Muitas vezes pensei, “que diferença o trato que se dá aqui ao do Brasil” – lá que ensina é uma espécie de criado, escravo da necessidade, pode-se ser malcriado e não pagar os atrasados; a princípio ficava constrangida de tantos presentes finos que recebia. “Não fique aborrecida”, dizia-me Riokai, “aqui faz parte da tradição se considerar o professor, que não é obrigado a retribuir os presentes, igual aos bonzos que pagam com rezas…” Tínhamos arranjado o primeiro andar de nosso sobradinho em atelier; dos dois lados eram janelões de correr como são todas as janelas no Japão; também todas as peças têm armários embutidos, mesmo nas casas pobres; ali colocam-se colchões e cobertores que são tirados todas as noites e arrumados, sobre “tatamis” e no dia seguinte, repõe-se no “oshiire” (armário embutido), ficando a peça livre e espaçosa, sem armário nem mobílias. Da nossa sacadinha via-se as belas árvores de nosso jardim; quando Riokai não saía para trabalhar fora, pintava-se no atelier. sempre vinham amigos para conversar, almoçar ou jantar, gostavam da comida francesa; eu tinha ensinado minha cunhada Kyoko-san a fazer pastéis, canja, arroz à moda daqui. Eu gostava de certas iguarias japonêsas, como tempurá e sukiaki, meu prato preferido.

A época em que há mais frutas no Japão é no estio e outono. No estio e no outono as frutas abundam no Japão. É uma beleza vêr os campos de morangos, frutas deliciosas, vendidas em caixinhas bem acondicionadas, as maravilhosas maçãs de Hokkaido (Norte do Japão), os pêssegos incomparáveis, saindo a pele como fosse uma luva, perfumados, macios, doces e lindos. Caquis aparecem lá para o mês de outubro – tudo é maravilhoso nessa fruta, a cor, a forma e sua suculenta polpa como se fosse sol concentrado. No inverno come-se êle sêco, que ainda é muito saboroso. Na estação fria há muita tangerina, laranja, castanhas, avelãs, etc….

1º de janeiro, tem-se muitas obrigações nessa época. Os japonêses ficam atarefadísssimos nos últimos dias de dezembro – limpa-se a casa toda, sobre a porta de entrada colocam um crustáceo, espetado num “moti” (pão de arroz), uma laranja, enfeitam com folhas de samambaia. Chama-se “shimenawa de oshogatsu”; todas as portas amanhecem no dia 1º com essa decoração e a bandeira branca com o sol nascente flutuando. Por dentro da entrada também, põe-se um grande par de “moti”com um grande camarão cozido bem vermelho por cima, adornado de folhas de samambaia, fazem comida para alguns dias pois só se cuida de receber cumprimentos e ir retribuir. Fora só se vêm homens de fraque, apressados a irem cumprimentar os amigos; a educação manda-se que se deve tirar todo agasalho, sobretudo, cachenê, etc.; é um não acabar mais de felicitações; se se encontrar um amigo na rua, a mesma coisa se faz, sendo um frio de rachar. O comércio fecha por três dias, mas a verdade é que a festa dura o mês inteiro. Nesse dia importante do ano novo eu trajava um quimono de sêda prêta todo estampado de forro vermelho, mandava arrumar o laço atrás; Riokai punha fraque e gravata prêta; ficávamos por dentro da entrada, esperando os visitantes e oferecendo sakê em minúsculas taças.

Dia três de janeiro, aniversário de Riokai, convidávamos todos os anos Koisso e seu grupo para jantar; êsse amigo era rico, tinha um magnífico atelier numa montanha de Kobe com grandes e bem tratados jardins. Ele tinha sido colega de Riokai e tinha estado em Paris, sempre trabalhando apesar de seu atelier estar constantemente com amigos; gostava de Degas e Manet, procurava com um belo desenho e colorido sóbrio chegar a êssem mestres. Koisso Riohé (10) era muito apreciado no Japão, seu atelier era um centro de pintores, literatos e poetas; físicamente se parecia com Riokai, era amável e meigo. Tinha sempre à  sua disposição dois belos modelos; quando saia era com uma escolta de amigos; divertia-me, dizer que era o general com seu estado-maior.

(10) KOISO, RIOHEI (1903 – 1988) estudou na França de 1928 a 1930 e expos quadros no Salon d’automne em Paris, o mesmo do qual Ryoukai Ohashi participou. Em 1950 tornou-se professor na Universidade de Belas Artes e Música de Tokyo (Tokyo Geijutsu Daigaku) e foi eleito membro da Academia de Arte do Japão (Nihon Geijutsuin) em 1983. Recebeu a Ordem da Cultura (Bunka-shõ) em 1984. Pintou principalmente nus e produziu várias ilustrações para revistas.

Como achei interessantes muitos costumes do Japão! No inverno, homens, mulheres e crianças usam uma espécie de bico de veludo prêto sobre a boca e nariz, amarrado à s orelhas; pensam que assim se livram dos resfriados, não respirando o ar gelado. Os homens, no inverno, os que são mais elegantes usam umas longas capas com sobre-capa de drap prêto e uma minguada gola de pele de foca; é exatamente o que usavam os “cochers de fiacres”, cocheiros que conduziam carros em Paris nos princípios do século, muitos com o clássico chapéu de coco e guetás (sapatos de madeira) nos pés, presos só no dedão; ficam monumentais com êsse severo traje. Coisa curiosa é a festa dos meninos (11) – começa no dia 5 de maio; toda família, que tem filhos varões, ergue à  entrada de sua casa um comprido mastro; flutuando como bandeiras, enormes peixes feitos de morim, alguns vermelhos com escamas pintadas em branco, outros brancos com escamas vermelhas, olhos de ouro; se tiver um filho; é um peixe, quantos filhos têm, tantos peixes são, todos amarrados ao mastro pela boca, que vai enchendo o peixe de ar dando-lhe vida e movimento; ao menor vento, parece que estão nadando no ar; alguns compridos de cinco metros. Gostava de vêr pela porteira do trem ou do onibus, a quantidade de peixes nadando ao ar livre.

(11) Em japonês, KODOMO NO HI, “dia das crianças”, mas o feriado é especialmente dedicado aos meninos.

“Momo no Sekku” (12) é a festa das meninas – começa no dia três de março. Na melhor sala da casa – ergue-se uma espécie de altar – que vai do chão até o forro, como uma escada coberta de pano vermelho; no centro, dois personagens representando o Imperador e a Imperatriz; todas as bonecas são expostas, inclusive as que pertenceram à s avós e tataravós da família, brinquedos de valor; convidam os amigos nessa sala toda adornada, oferecem sakê nas pequeníssimas taças com açúcar cristalizado, doces bonitos, para se ver, de diversas cores, com formas de flores de ameixeira, cerejeira. As meninas da família aparecem com ricos quimonos, vermelhos, vivos, cabelo cortado em franjas sobre a testa, o cinto atrás se laça em forma de borboleta; são lindas como ricas bonecas, as meninas vestidas assim, dançam – há sempre alguma avó que toca shamissem (shamisen = instrumento de cordas típico do Japão) e canta.

(12) Também chamado de JOMI ou JOSHI NO SEKKU, estas são nomenclaturas antigas para o feriado hoje conhecido como HINAMATSURI.

No Japão os velhos são tratados com muito acato e carinho na família, sabem quantidade de etiquetas que vão transmitindo a seus descendentes.

As artes tradicionais são muito apreciadas, muitas se aprendem durante anos, como o arranjo das flores, a escrita, escrever-se com o pincel a nanquim os belos e artísticos caracteres chineses; a dança, que sempre achei um encanto, aprende-se desde criança. Os japoneses querem sempre aprender alguma coisa, mesmo depois de velhos; há sociedades para a célebre cerimonia do chá, que é um verdadeiro culto.

A festa que eu tinha prazer era Omatsuri: cada templo a faz uma vez por ano em épocas diferentes. Sai um pesadíssimo andor (omikoshi), todo dourado, contendo a divindade; sobre o teto, no centro, paira um galo de ouro; o andor passeia pelas ruas do bairro carregado pelos rapazes do povo com grandes preces e cantos; uma multidão acompanha essa procissão. Todo japonês é shintoísta, culto dos antepassados desde a fundaçà o do Japão; também a maioria é budista, não importa ter duas religiões. Quando chega os meados de julho, dia 13, os japoneses ficam atarefados, agitados: é a grande festa anual, o dia dos mortos (obon). Nas cidades dura três dias e na roça, um mês ou mais; no Japão nunca se sabe ao certo quando termina esta festa; longe de ser triste, são dias alegres. Dizem que o espírito dos falecidos  visitam suas famílias e se estiverem pesarosos ou acabrunhados êles sofrem… No pequeno santuário que tem cada família, oferecem flores e alimentos, incenso. Na roça, dançam, fazem casamentos, banquetes, grandes festas; todo japonês está contente quando chega essa época. Lá quase não há cemitérios, incineram-se os mortos logo depois do entêrro.

Os japoneses gostam dos animais e os tratam bem; interessante ver as juntas de bois puxando o carro, todos calçados com sandálias de palha para não ferir os pés; também em julho e agosto, no mais forte do calor, os animais que puxam carroça, burros, cavalos, usam chapéu de palha, e uma tolda que vai da nuca ao rabo, bem fixada no centro, lhes dá uma aparência de cavalos alados; coitados, mas prêsos, ali nos freios… Tudo isso se via no Kokudo, pertinho de casa.

O inverno era a estação do ano que Riokai mais apreciava; êle ía com um colega, Susuki, pintar nas roças e à s vêzes no país natal, Hikone, uma cidadezinha antiga entre Kyoto e Nagoya; possuía um lindo castelo, que Riokai muitas vêzes pintou, seu belo rio que serpenteava as montanhas, no inverno todas brancas de neve; numa velha porta de Hikone podia-se ver ainda o brasão do samurai, que tinha sido avo de Riokai do lado materno.

Himeji, um dos maiores castelos. Imenso, majestoso e altivo sobre suas muralhas de pedra, seus telhados caprichosamente trabalhados e seu maravilhoso parque, seus lagos povoados de peixes de estranhas formas, vermelhos com escamas de ouro, prêtos com o rabo dourado, um luxo extraordinário que a natureza empregou para decorar êsses peixes. Esse castelo ficava longe de casa. Minucha, eu assim o chamava, Riokai sempre ía, à s vêzes, pintar nesses sítios; fêz telas soberbas dessa morada feudal e especializou-se em castelos do Japão.

Em fevereiro êle ía pelas roças à procura de ameixeiras em flor; êsse arbusto florescia como um milagre saindo de um tronco prêto e tortuoso; nas cêrcas à beira das estradas, no campo, mas o frio era tal que eu nunca fui pintar essas flores que formavam tufos brancos, perfumados. Um pássaro chamado “uguissu” (ugisu = rouxinol) começa seus maravilhosos cantos ao iniciar dessas flores e cala-se quando desfolham; sua cor não é bonita mas seus gorgeios são incomparáveis. Os poetas exaltaram seu canto maravilhoso, que aliaram às delicadas flores de ameixeiras…

Eu esperava a primavera, abril, para me expandir, começar as excursões e romarias a Kotoen, foi um dos meus paraísos… Lugar feérico pelas cerejeiras, pessegueiros e camélias em flor… Era uma imensa propriedade, que os donos nos deixavam pintar; ali, nos dias de semana, éramos os únicos visitantes, toda aquela orgia de flores era só para nós… Foram êsses passeios os tempos mais felizes de minha vida. Ficava-se o dia todo até escurecer, fazendo estudos, croquis, e enfrentando os caprichos da primavera, rajadas de chuvas e vento gelado, muito frio mas logo o sol radiante iluminando a paisagem, montanhas ao longe, um grande lago e a mais bela sinfonia que jamais vi em cor de rosa quase branco… Riokai sempre levava a máquina fotográfica para fixar os momentos felizes de nossas vidas… Numa dessas fotos, que guardo como querida lembrança, estamos à  frente de uma cerejeira, felizes com nossas caixas nas mãos, os galhos em flor nos cobriam os ombros. Fiz boas telas, muitos estudos à espátula, que tiveram sucesso, em exposições, em Kobe, Nagoya, Ossaka. Todos os anos expúnhamos no “salon” dessa cidade. Meu tempo era pouco para me dedicar a tantas coisas além da pintura, que era minha principal preocupação – as exposições, o piano, as alunas e o Matsuzakayá; tinha que pensar nos meus vestidos; ser elegante, pois eu tinha que apresentar a moda de Paris, nos desfiles de manequins. Às vêzes os diretores dessa grande casa nos convidavam para sukiaki em Kyoto, cidade afamada pelos seus antigos e múltiplos templos e suas gueixas. Muitas vêzes me perguntaram aqui o que eram as gueixas – seria difícil a um estrangeiro compreender. Há muitas categorias. Elas aprendem a vestir o quimono com elegância e fazer magistralmente o laço do obi, atrás, puxar bem o quimono atrás para dar relêvo ao pescoço nu, as atitudes, as regras da tradição, como ajoelhar-se sobre a almofada, como andar, como cumprimentar, as regras à  maneira das passadas etiquetas; algumas se dedicam à s artes, cantam se acompanhando de um instrumento de longo cabo, “shamissen”; outras dançam, tirando belos partidos com as longas mangas e leques, que movem numa atitude mágica… Há escolas de gueixas onde entram meninas; elas tomam o nome de “Maiko”. Há muitas sociedades que dão sempre banquetes, onde só vão homens e acharam que seria triste uma festa sem mulheres. As gueixas são os adornos dessas reuniões; enquanto comem ou conversam, elas cantam ou dançam ou ficam perto dos hóspedes, enchendo as taças de sakê, sabem dizer piadas, que alegram o auditório; dizem que elas não exercem além disso nada de desonroso, só as de muito baixa casta é que se entregam à vida sexual. Houve gueixas famosas pela inteligência e romances como Madame Butterfly. No dia seguinte ao banquete, elas vão à casa do cliente cobrar; é geralmente a esposa que paga a conta. Todo japonês é orgulhoso de suas gueixas e deseja saber qual a impressão que o estrangeiro tem delas.

Quantas vêzes fomos a Nara pintar; ficávamos dois ou mais dias trabalhando naquele maravilhoso parque, vastas extensões de gramados, como se fossem macios tapetes de veludo verde, seus veados saindo em bando das florestas, muito mansos; alguns deixavam passar a mão, para terem bolachas; lindos com seus grandes olhos, e apenas os chifres apontando. Kasugajinja era o imenso templo, de laca vermelha. Nara foi a primeira capital do Japão, cópia de uma capital chinesa. Seu grande Buda dá vida a êsse glorioso passado. Foram êsses passeios os tempos felizes de minha vida: arte, romance e amor… Nara era célebre também pelas suas flores de glicínias; em diversos lugares dêsse imenso parque havia telheiros de bambus, em que essas trpadeiras floresciam em cachos cerrados de cor lilás, de doce perfume. Era a festa das glicínias; os japoneses, na primavera, não ficam em casa – vão em massa apreciar a natureza em flor e por todos os lados havia japonesas de quimonos de primavera; também encontravam-se bonzos que serviam os templos, de cabeça raspada, quimono branco, com outro por cima de gaze prêta, uma estola no pescoço, parecida com a dos padres católicos quando dizem missa, vários rosários nos pulsos, uns de jade verde; pelo Japão inteiro os bonzos andam com êsses trajes, quase todos se casam, são doutos em estudos de teologia, sabendo escrever e exprmir-se bem e corretamente. Eu já estava começando a compreender melhor êsse difícil idioma; os japoneses gostavam de me ouvir falar e riam; eu também, ria porque nunca pensei que um dia pudesse falar bem êsse difícil idioma.

Às vêzes íamos a Kobe, porto importante, com muito comércio; Consules estrangeiros que moravam lá davam suas festas e tinham seus clubes, alemães, inglêses, portuguêses, italianos; das outras nações havia menos. O que havia muito era gente da Coréia – exerciam trabalhos subalternos, as mulheres todas de branco, os homens também, usando uma minúscula cartolinha no cume da cabeça; todos êles grandes, uma raça muito diferente dos japoneses. No variado comércio de Kobe encontrava-se de tudo; muitas casas que vendiam material de pintura pois no Japão a corporação era grande; lojas com belíssimas sêdas para exportação. Pérolas, cultivadas, que o grande cientista Mikimoto descobriu, teatros, cinema, diversões, restaurante. Tínhamos em Kobe grandes amigos, o consul da França e senhora, Madame Hauchcorne; jamais conheci pessoa tão boa, inteligente, sociável; foi mesmo uma grande amiga a quem me apeguei com toda a ternura. Vinham à  nossa casa jantar; Minuche, sua filha, era uma moça cheia de recato mas muito simpática. A todas as festas do consulado éramos convidados, concêrto de Jacques Tibeau e o violoncelista Charbonier; bailarinas espanholas de renome, que passavam por Kobe. Tivemos uma ocasião convite para ir ao grande jantar e baile de um couraçado francês ancorado em Kobe; a essas festas só ia a alta classe; também conhecemos a baronesa Fujita, que morava num imenso bangalo no cume de uma montanha em Suma. Falava muito bem o francês sem nunca ter saído do Japão; foi também uma grande amiga; ela gostava de vir em casa, com suas duas filhas e sempre nos adquiria quadros, ora meus ora de Riokai. Todos gostavam dêle; era sociável e seu sorriso captava todas as simpatias, gostava de tudo o que fosse arte; à s vêzes passava a noite toda sem dormir para ler um livro sobre arte. Durante êsses anos que ficamos em Ashiá (Ashiya), a família vinha à s vêzes passar uma temporada conosco; vinham de Formosa (Taiwan) onde habitavam meu sogro e minha sogra; êle tinha sido professor de escola primária e depois diretor. No dizer dos entendidos fazia belas poesias haikai; meu marido dizia que êle era para o meio em que tinha vivido, muito inteligente; sempre me dei bem com todos da família. Economicamente éramos independentes, o que faz muito para a boa harmonia numa família.

Houve épocas em que fiquei anos sem ir ao consulado do Brasil; em Kobe, depois que procurei um consul para me fazer uma procuração, foi tão cheio de empáfias e complicações, que nunca mais lá voltei. Em 1939, um novo consul do Brasil chegava a Kobe: era o sr. Aloísio de Magalhães, homem inteligente, vibrante e amigo dos artistas. Fomos convidá-lo para nossa exposição em Ossaka; eu não esperava vê-lo chegar; fazia só alguns dias que tinha vindo do Brasil a Kobe, com sua sobrinha Atala; foi uma alegre surprêsa quando no dia do vernissage vimo-lo entrar na exposição, todo sorridente “ainda tem alguns quadros para vender perguntou êle?” Escolheu dois quadros nossos e logo nos convidou para ir a Kobe, a suas festas. Atala era ótima pianista, tendo sido aluna em Paris de Corto, sempre me aconselhava a fazer programa para concertos. O aniversário do consul Magalhães foi festejado com um grande banquete em Kobe; todos os japoneses amigos do Brasil foram convidados. Riokai, por essa ocasião, conheceu alguns japoneses influentes. O consul Magalhães insinuou-nos que devíamos fazer uma viagem ao Brasil por intermédio do Gaimusho, “ministério das relações estrangeiras”. Riokai tinha um grande desejo de conhecer o Brasil e essa era uma ocasião única de se expandir; começou a desenvolver essa idéia, que foi se fortalecendo para terminar numa realidade… Foi a Tókio várias vêzes, não foi fácil, mas como o Japão precisava de propaganda, encontrou amigos no Gaimusho que eram favoráveis. Nos fins de fevereiro de 1940 as coisas estavam quase certas. Em março, Riokai foi a Formosa visitar a família e fazer exposição de nossos quadros. Eu embarquei uns dias depois, devido ao desfile de modelos que tinha que apresentar no Matsuzakayá.

No cais de Irum estava toda a família à minha espera e logo tomamos o trem que nos levou a Taihoku, a capital da ilha; todos da família de Riokai me acolheram bem e estavam contentes de me ver. Depois da exposição terminada, que foi um sucesso, fizeram questão de fazer a nossa festa de casamento: sete anos depois! Meus sogros com quimonos de cerimonia ficaram na porta do grande salão do hotel recebendo os cumprimentos; eu e Riokai estávamos ao lado, eu de vestido de soirée de saia de cetim prêto, bem colante e blusa de lamê cor de rosa, dava um aspecto exótico ao ambiente. Mais de cinquenta talheres foram postos no melhor restaurante chinês da cidade.

Passando pelas estreitas ruas típicamente chinêsas, pude ver a sujeira incrível das casas com suas portas abertas; nuvens de moscas enchiam o ar; sobre o lixo, as crianças brincavam; chineses altos e magros, metidos nas suas roupas prêtas colantes, pareciam fantasmas. Suspirei quando saí daquele antro. Achei Taihoku uma grande cidade, de ruas largas, compridas avenidas todas asfaltadas, comércio importante e com todas as regalias da época moderna, bonde, ônibus, telefone, apesar de ainda se ver os carros puxados por um homem, velho costume chinês. No Japão só em Kobe e Yokohama pode-se ver êsses “curamás”(13): são sempre estrangeiros que acham interessante êsse modo de condução, relegando o próximo ao estado de cavalo.

(13) Provavelmente a autora quis usar a expressão KURUMA, “carro” (automóvel), para designar riquixá.

No dia em que partimos, como a rua de meus sogros era muito estreita para entrar um táxi, foi a êsse gênero de condução que tivemos de recorrer. Ficou uma fila de “curumás” na porta; minha sogra encabeçava, eu e Riokai logo atrás e em seguida os parentes; eu me diverti, tomando parte nesse inédito desfile, até a estação. Alguns parentes vieram até Irum. Das janelas do trem via-se a extensão de terras bem trabalhadas, bem cultivadas, parecendo-se com a vegetação do Brasil, bananeiras, palmeiras, coqueiros e canaviais e mesmo pequenos cafezais. Quarenta minutos percorridos deu para fazer uma idéia do progresso; quando essa ilha estava sob o domínio chinês eram só pântanos e terras incultas; os mandarins não faziam nenhum esforço para melhorar.

Voltamos pelo Fuji-Maru a 28 de março de 1940; após quatro dias estávamos desembarcando em Kobe. Riokai logo teve notícias que era certa nossa viagem ao Brasil, aprovada pelo Gaimusho. Daí começamos a trabalhar no duro, fomos diversas vêzes a Tókio; justamente havia uma missão brasileira em Tókio fazia uns dias e iam homenageá-los com grande recepção para serem apresentados ao Príncipe Takamatsu-Mia e Princesa. (14) A missão foi introduzida pelo Embaixador do Brasil em Tókio e fomos convidados para essa cerimoniosa festa. Os príncipes estavam de pé sobre um estrado numa saleta, enquanto um secretário anunciava um por um o nome dos convidados; foi servida uma enorme mesa com as mais deliciosas iguarias. Ao discurso do embaixador, respondeu o príncipe em Inglês; houve outros discursos em que brilhou a retórica e a feliz cordialidade dos dois países. Terminado o banquete, vieram me procurar para falar com a princesa; achei-a muito amável, inteligente e linda com seu quimono cor de rosa.

(14) TAKAMATSU, NOBUHITO (1905 – 1987) Príncipe Imperial, terceiro filho do Imperador Taishõ e irmão mais novo do Imperador Hirohito. Foi adido militar durante a Segunda Guerra e promovido capitão em 1942. Pouco antes do fim da Guerra, fez parte de uma conspiração que afastou o general Hideki Tõjõ do poder.

Nossos trabalhos foram por essa ocasião expostos em Tókio, numa grande sala na Guinza – o Gaimusho fazia questão de mostrar nossas telas.

Foram reproduzidos em cores três mil exemplares “cartão postal” de dois quadros de Riokai, “Velho porto de Akashi”, e “Porta de Yoshino” e dois meus “Le chapeau de paille d’Italie” do Salon de Paris, 1933 e “Cerejeiras em flor do parque Inogashira”. Ficaram ótimas essas reproduções e tiveram sucesso no Brasil e Buenos Aires.

Riokai veio com o título de “pequeno embaixador da arte”. Como era princípios de abril, Tókio estava toda engalanada de suas cerejeiras em flor – nós também estávamos contentes e agitados com tanta sorte. Na volta descemos numa estação da Montanha Fuji; um funicular subia para depositar os turistas no grande hotel Gora Palace de grande luxo, frequentado só por milionários e titulares do Japão, que vinham veranear nesses encantadores sítios. Riokai dizia rindo que à s vêzes gostava de viver no seio da grandeza… Nosso quarto era imenso, claro como o dia. Janelões com varanda davam para o vasto panorama. Foi um espetáculo que nunca hei de me esquecer… Via-se montanhas, colinas, lagos e cerejeiras floridas como no esplendor de uma imensa sinfonia, onde a Montanha Fuji mostrava na sua majestosa beleza sua coroa de neve; era tão linda a paisagem nesse luminoso dia que receava-se respirar para não perturbar a divina harmonia. À tarde fomos pintar à beira dos célebres lagos de Hakone, que há nas imediações. A viagem foi marcada para os fins de julho, no vapor que estreava-se, Hokoku-Maru. Dia 14 de julho dei uma audição de minhas alunas e também encerrei minha estada no Matsuzakayá. Entreguei-me aos preparativos da viagem, meus vestidos, precisava me mostrar chique; estava numa posição de destaque.

Os cinquenta modelos que levei, foram cuidadosamente estudados, chapéus, luvas, sapatos, etc. Também de Riokai, êle não se preocupava com êsse lado decorativo; estava atarefadíssimo na embalagem dos quadros, dêle e meus, que iam em grandes caixas, já emoldurados, além dos mil detalhes que se preciam para uma longa viagem dessas. A mim sózinha teria sido impossível semelhante tarefa, com minha frágil saúde, mas apesar de tantas ocupações, foi um trecho feliz de minha vida, em que a sorte nos sorria… Nos últimos dias de preparativos não se dava conta de tantos afazeres, visitas a toda hora, eram tantos os presentes que chegavam, recomendações a amigos do Brasil, jornalistas para entrevistar-nos, – ficamos em pouco tempo personagens importantes.

O dia de embarque chegou; o Hokoku-Maru, todo branco, estava atracado no cais de Kobe; brilhava num belo dia de estio, todo engalanado de serpentinas e bandeiras. O cais estava repleto, iam viajar japonêses de classe. Depois de subirmos a ponte, ficamos logo rodeados de amigos, que já estavam no grande salão à nossa espera. O mais agradável foi ver o consul Magalhães e Atala, que viam realizados seus votos; por todos os lados eram sorrisos, desejo de sucesso. O gongo com sua voz metálica se fêz ouvir, e todos foram descendo; já estávamos na rampa do navio, dizendo Adeus aos amigos e parentes que estavam no cais, eu com um enorme buquê de rosas vermelhas nos braços e Riokai com seu belo sorriso, e agitando o leque (no Japão os homens usam leque no estio). O navio foi se destacando do cais, e a sereia enchia o ar com sua possante voz… Estávamos exaustos e emocionados; ainda ficamos no convés para ver o sol todo de ouro, que se espelhava no mar e os gritos das gaivotas que nos diziam Adeus…

Quando entramos no nosso camarote todo florido, eram tantos os presentes que se tinha dificuldade em se mover; cada caixa de bombons e outros presentes traziam um cartãozinho de bons votos; a cada um cabia agradecer por carta. Riokai já estava pensando nisso.

Depois de uns dias de aprendizagem das disciplinas organizadas do vapor, começamos a tirar nossas caixas de tintas e pincéis. Nosso camarote era todo branco, todo novo, grande e luxuoso; a janela dava para o mar e a porta para um corredor todo atapetado de vermelho, perto do grande salão, que por uma larga e curta escada ia dar no primeiro tombadilho. íamos tocar em numerosos portos da China, da Índia, e da África. Riokai estava ativo em arrumar suas telas, papel, caixa de aquarela, cavalete portátil, etc. Ele tinha encontrado um bom amigo, o sr. Omori, que vinha substituir o embaixador em Buenos Aires; gostava muito da arte e do caráter de Riokai. Quase todos os passageiros eram japonêses que íam à  Argentina e ao Brasil.

Como sempre, nessa longa viagem de quarenta e cinco dias, não faltaram alguns escândalos. Um ex-consul de Portugal nas Filipinas, já maduro, gordo e barrigudo e sua esposa, engalfinharam-se de maneira espetacular, enchendo de gritos seu camarote. Infidelidade da sua sobrinha, que viajava junto, foi o motivo dêsse atentado a calma e ordem do navio…

Numa bela manhã apareceu o porto de Singapura. A convite de um amigo, sr. Tanaka, diretor da companhia Shossen-Kaisha, passamos um esplêndido dia; depois de percorrer a ilha, fomos para um restaurante chinês que tinha uma torre em forma de pagode, com seus telhados de pocelana azul. Ali, num dos andares, saboreamos durante horas a delícias da comida chinesa, ouvindo seus cantos agudos e estridentes, acompanhados de seus instrumentos. Ao contrário dos japoneses, os chineses acham que o barulho traz alegria. Na volta da nossa viagem, devíamos encontrar-nos com êste amigo para viajar por toda a Índia… Nossos planos não puderam se realizar devido ao ar de guerra que já estava soprando.

Em Singapura, onde todas as raças existem, fiz muitos croquis a aquarela e escrevi “impressões” sobre seus habitantes. Cada país usando seus trajes – típicos malaios, chineses, indus, judeus, japoneses, árabes e europeus. Os homens de turbante e barba, indicando sua casta, quase todos andam de roupa ocidental mas de turbante. As mulheres indus, algumas bonitas quando são moças, porque vão engordando de tal maneira que parecem pipas, ao chegar a ser matronas, em geral têm grandes e belos olhos, vestindo o sari, saindo dos ombros em largas pregas como os gregos antigos, uma pedra preciosa embutida entre os cílios ou na asa do nariz; muitas usam pulseiras nos tornorzelos e anéis nos dedos dos pés, com seu andar calmo e majestoso.

Depois foi Hong-Kong, rodeado de mantanhas e seu mar povoado de pitorescas barcas – moram nelas famílias inteiras, criando galinhas, porcos, cachorros, as mulheres lavam roupa, e cozinham, remam mais adiante quando querem mudar de lugar. Suas ruas formigando de gente, com suas carrocinhas servindo de restaurante ambulante, seus habitantes num contínuo vai-vém…

Colombo. riokai conhecia um negociante de jóias indu, que tinha uma loja no centro – vendia-se ali de tudo, objetos em tartaruga, belas pulseiras em platina e safiras da Índia, jóias com brilhantes, cachos de bananas, frutas sêcas, etc. Ficou contentíssimo em rever Riokai; queria por força me vender uma rica pulseira, com safiras, dizia êle que pagaria na volta, mas eu não quis. Até no táxi êle veio com a jóia sob os meus olhos, dava sem documento nenhum!

Depois tivemos quinze dias de mar-céu, o canto do mar, o ritmo das máquinas, os peixes voadores e à s vêzes o dorso escuro de algum tubarão seguindo o navio. A hora solene era o por do sol, mergulhando em sua glória num mar de púrpura e ouro; nas noites profundas e estreladas sonhávamos – era o contato com a vida pura do espírito.

Houve festa a bordo à passagem do Equador, muitos foram batizados com nomes de peixes, sardinhas, etc.. À noite, grande baile. Riokai detestava fazer toalete e vestir o smoking para jantar, apesar de não ser o traje a rigor tão estrito quanto nos transatlânticos europeus. A comida era francesa e japonesa, muito bem feita por um mestre cuca francês. Todos os dias pratos deliciosos servidos no requinte do luxo em pequenas mesas redondas.

África. Mabassan, colonia inglêsa, me pareceu bem pobre; depois foi Zanzibar. Indus, árabes e pretos. Pela estrada que levava ao centro, de um lado e de outro, copiosas mangueiras, bananeiras, abacateiros, toda a vegetação tropical. O de que gostei foi no quarteirão árabe, as casas todas caiadas de branco com suas portas de madeira escura, sem pintura, todas trabalhadas como rendas, as sacadinhas nas janelas, também de madeira, muito artístico, suas ruas ermas devido ao comércio estar dentro, de portas fechadas. Luxo e conforto era o bairro habitado pelos britânicos. Beira, colonia portuguêsa conservando seus velhos hábitos, cidade feia e relaxada. Os portuguêses são os donos, os pretos mantidos na ignorância e servidão. Durban, uma Inglaterra com outro clima, seus bondes elétricos de dois andares como em Londres. Como era a primeira viagem do Hokoku-Maru, em cada porto davam recepções, grande mesa de doces, iguarias japonesas. Os principais da cidade eram convidados; divertia-nos ver subri pela escada os altos funcionários com suas fardas, as burguesas com suas filhas, aproveitando essa ocasião única de se mostrarem. Achei Durban uma grande cidade, limpa, de comércio importante, com enormes vitrinas mostrando um casamento inteiro, a noiva e convidados. Os inglêses têm um fraco por essa cerimonia. Em grupos fomos fazer uma excursão nas montanhas, muito longe, onde havia ainda tribos de índios mansos vivendo em choças redondas de uma porta só. Depois de certa hesitação o chefe apresentou suas esposas, um bando de mulheres de aspecto miserável, cabelos tingidos de vermelho e meticulosamente trançado com continhas de cor, penteados complicados – explicaram-nos que os cabelos assim arrumados duravam muitos anos. Muita criança barriguda e doentia. Viviam ali da caça e de alguns produtos que íam vender na cidade. Os chefes estavam ávidos e discutiam com o intérprete, quantos presentes tinham trazido. Port Elizabeth, só me lembro de seu longo e interminável cais, que nos levou à cidade, tudo novo e de mau gosto. Capetown, muito importante, toda inglêsa, belas e grandes vitrinas só com mercadoria da metrópole, um belo jardim botânico, com seus gramados bem tratados, copadas árvores, que davam macias sombras. Vi pela primeira vez curiosas flores parecendo cabeças de pássaros saindo de tufos de folhas escuras – soube que se chamavam aves do paraíso.

Mais dez dias de mar e céu. Uma bela manhã avistou-se terra, umas longínquas tiras confundindo-se com o mar; só ao anoitecer íamos chegar. Uma multidão esperava o navio no cais, era a viagem de estréia, e todos queriam ver o enorme transatlântico japonês. Os hinos dos dois países se fizeram ouvir. oito dias ficou o Hokoku-Maru em Buenos Aires. Ficamos uma noite só no hotel e no dia seguinte o sr. Omori nos mandou buscar, donde fomos hospedados na Embaixada do Japão. Durante êsse tempo visitamos amigos, museus, etc. gostamos do aspecto de Buenos Aires, um tanto parecida com Paris. Logo foi o Uruguai e enfim Rio de Janeiro.

Chegamos numa noite de chuvinha fina e pertinaz. Vieram ao nosso encontro o sr. Hasegawa, presidente da Associação Nipo-Brasileira, alguns membros da Embaixada, escritores e jornalistas, Alexandre Konder, repórteres dos principais jornais do Rio, fotógrafos. Já tinham notícias pelo Gaimusho de Tókio da nossa vinda e de nos dar o máximo de apoio. Arranjar local para fazer a exposição foi um sério problema. O melhor era o Palace Hotel mas já estava tomado por mais de um ano. Foi preciso a influência do embaixador sr. Kudo para conseguirmos fazer a exposição em novembro no Palace. Foi um sucesso –  no dia do vernissage estavam presentes o embaixador e sra.; no centro da sala uma maravilhosa cesta de flores, onde pendiam, fitas comas cores japonesas, presente do embaixador. Intelectuais, jornalistas, artistas, pintores conhecidos e a melhor sociedade do Rio. Mas o que me encheu de intensa alegria foi rever uma querida e predileta amiga que havia conhecido, Maria Paula, há tantos anos, uma grande artista que sempre admirei; o tempo nada tinha alterado sua beleza e sua amizade.

Foram muito apreciados os trabalhos de Riokai feitos em Paris e os castelos do Japão; a sua grande tela do Castelo de Himeji foi adquirida para a Embaixada. Meus quadros também tiveram muito êxito: as telas que tinha exposto em Paris e as cerejeiras do Japão; o sr. Osvaldo Teixeira, diretor do Museu Nacional de Belas Artes, adquiriu em nome do govêrno para a galeria do museu, um trabalho de Riokai “Velho porto de Akashi” e um trabalho meu, “Pivoines”. Estávamos nos orientando para vir a São Paulo, onde grandes dificuldades nos esperavam. Não havia sala para expor. Alugamos por excessivo preço uma imensa sala do prédio Ita, na rua Barão de Itapetininga. Riokai teve que arrumar, mandar fazer repartições com cavaletes, forrar de lona as paredes, por luz elétrica com grandes lâmpadas pois êsse local estava sujo e escuro – tivemos grandes despesas. Eu conhecia muitos pintores e amigos de antes, mas nenhum veio ao nosso encontro. Fiz uma conferência sobre minha estada no Japão e toquei algumas músicas de Kobune, compositor moderno do Japão na melhor rádio de São Paulo, a Rádio Cruzeiro do Sul. A conselho de amigos oferecemos no dia da inauguração, um coquetel com a presença do consul-geral do Japão sr. Narusse e dos funcionários do consulado; ficou repleto de visitantes. Artistas, jornalistas, pintores vieram para comer doces, as senhoras para mostrar os vestidos e sairem fotografadas nas revistas, podendo também se expandir, criticando os trabalhos.

Terminada a exposição em fins de 1940, fomos passar o primeiro de janeiro e mais dias em Registro, colonia japonesa para a cultura do arbusto do chá. Ali Riokai iniciou uma série de estudos, pintados a óleo sobre papelão, permitindo êsse achado, fazer com mais rapidez e belo colorido paisagens e ruas do Brasil. Eu o acompanhava sempre e passava o tempo pintando. Voltando a São Paulo êle foi com alguns amigos fazer uma viagem pelo Noroeste, expondo em várias cidades do interior onde a colonia japonêsa o acolheu com carinho. Eu fiquei em São Paulo: estava cansada e precisava me tratar. Ficamos em São Paulo até meados de abril, indo à s vêzes a Santos, que Riokai gostava de pintar e à noite ir ao Cassino ver sumir màgicamente sobre o pano verde somas fabulosas.

O tempo que ficamos em São Paulo foi empregado em pintar fora, ruas, parques, enfrentando os transeuntes embasbacados; muitas vêzes nos rodeavam tapando nossa vista, mas o que mais gostávamos era pintar lá de cima da janela dos arranha-céus – com vistas amplas e magníficas e onde ficávamos livres da curiosidade alheia.

À noite íamos fazer visitas. O consul sr. Narusse nos ofereceu uma festa no consulado, seguida de grande jantar. Tive a alegria de ver no salão do consulado, um dos belos quadros de Riokai, adquirido pelo govêrno japonês, trabalho que tinha figurado no Salon de outono de Paris, “Blanchisserie”.

Pelo trem que nos levava ao Rio apreciávamos a linda paisagem, com as paineiras em flor como buquês cor de rosa… Ficamos uns dias no Natal Hotel da Cinelândia, onde habitávamos um claro e luxuoso quarto que fazia esquina; depois fomos morar num apartamento à rua São Clemente. Fomos à Companhia Telefonica e no dia seguinte estava um empregado com dois telefones à nossa escolha. Nossas vidas foram inteiramente dedicadas à arte. Todos os dias saíamos pela manhã com nossas caixas, pintando tudo quanto nos parecia interessante, ruas, panoramas, Copacabana, Paquetá, jardins, favelas, Urca, de Copacabana; a grande sala de jogo do Copacabana Palace era féerica, à noite com suas decorações branco e ouro, seus enormes lustres de cristal, hipnotizavam os olhos, o luxo em profusão, as ricas toaletes das senhoras à volta das mesas. Só se via dinheiro no pano verde; e a diabólica roleta sempre parando onde não se esperava era um dos paraísos de Riokai.

Frequentávamos exposições e festas na embaixada do Japão. Depois de cumprimentar o embaixador ao lado do retrato em grande do Imperador e da Imperatriz, nos amplos salões era servida grande mesa de iguarias, japonêsas e brasileiras. Os numerosos convidados formavam grupos na varanda, ou no jardim. Riokai fêz por essa ocasião a pedido do sr. A. Konder, a capa do livro “A imagem de bronze” de Nagayo (15), que estavam editando na Pongetti, a tradução em português de Konder. História dos primeiros cristãos no Japão. Riokai fêz uma belíssima capa representando a heroína do romance com a medalha de bronze na mão.

(15) NAGAYO, YOSHIRO (1888 – 1961) escritor e dramaturgo. Entre suas obras destacam-se as peças “Kõu to Ryuuhõ” de 1917 e “Inadara no Ko” de 1920, e o romance “Takezawa Sensei to iu no Hito” de 1925. Também redigiu uma auto-biografia entitulada “Waga Kokoro no Henreki” em 1959 e durante anos contribuiu com a revista literária “Shirakaba” (a bétula branca). O livro ao qual Dona Helena se refere é “Seidõ no Kirisuto”(o Cristo de bronze), de 1941.

Uma resposta que não tardou a vir foi a do sr. Yokohama, amigo em Buenos Aires: dizia êle ser favorável fazermos uma exposição nessa cidade; era fins de maio, época boa para se expor na capital portenha. Riokai ficou contente ao receber essa notícia.

A principal galeria de arte Muller, já tinha posto à nossa disposição para julho, diversas salas de sua galeria. Em fins de junho o navio cargueiro Toa-Maru nos depositou no cais gelado de Buenos Aires. O sr. Yokohama já estava à nossa espera com seu confortável carro, que nos levou a uma boa pensão, perto da Praça San Martin; nosso quarto dava para a rua, cada janela tinha uma sacada como em Paris, alí era tudo na penumbra, adeus ao sol do Brasil. Fomos logo apresentados à  família Yokohama, a sra. Matilde, muito simpática e inteligente. Argentina nata, cantora de talento, suas duas filhas Norma e Yolanda estudando na Universidade.

O sr. Yokohama era um erudito em arte japonêsa e oriental. Foi uma grande sorte conhecê-los pois conservei até hoje êsses amigos sinceros, apreciadores da arte pura e cheia de personalidade de Riokai.

No decorrer de julho abrimos a exposição, com muito êxito, com a presença do embaixador do Japão, jornalistas, artistas e da melhor sociedade portenha. Riokai teve o merecido sucesso, por verdadeiros conhecedores da boa pintura – as velhas ruas de Paris encantaram os argentinos, os jornais deram-lhe os maiores elogios. Assim se referiam “Paris de Riokai Ohashi” é aquêle que os turistas ricos não conhecem, são os velhos muros, com seus eloquentes cartazes, as velhas casas de linhas trágicas, as lojinhas pobres dos subúrbios”… E eu feliz por vê-lo incensado. Quinquilas Martins, o mestre tão querido nessa terra veio felicitá-lo; meus trabalhos também foram muito apreciados; a crítica nos principais jornais me foi favorável, notando os quadros que eu tinha exposto no Salão dos Artistas Franceses em Paris, e as paisagens de cerejeiras do Japão. Dois quadros nossos foram oferecidos ao Museu Nacional de Belas Artes pela colonia japonêsa: “Boutique de Cicles”, bela tela com vermelhos vibrantes de Riokai e a minha “La coupe verte”, que tinha figurado no Salão de Paris, 1932.

A exposição terminada, apesar de ser Buenos Aires de inverno rijo, íamos pintar nas ruas, parques, o lindo jardim em frente à Casa Rosada, Palermo, o imenso parque com belas alamedas e fizemos muitos croquis. Achamos Buenos Aires um pequeno Paris, harmonizando-se em cinza, com suas casas de poucos andares, todas no mesmo estilo, com balcões de ferro forjado, um belo comércio de modas, sentia-se um gosto pronunciado pelas modas e decorações francesas; por tudo onde se ía era no intuito de pintar, fotografar e filmar.

Foi uma bela noitada de arte em que a sra. Yokohama se fêz ouvir num recital, com muito êxito, de música japonêsa. Além da arte Riokai e eu apreciávamos os bons churrascos, o bom vinho, e as deliciosas maçãs assadas.

Tudo teria sido ótimo se não fossem as más notícias divulgadas pelos jornais, entre o Japão e a América: a coisa culminou quando dezesseis navios mercantes japonêses que iam passar pelo Canal do Panamá, foram impedidos por se achar o canal fechado, por ordem do govêrno americano. Ficaram êsses navios alguns dias à espera mas nada de as coisas se arranjarem e de novo voltaram ao Japão. Aí foi piorando a situação. Já estavam anunciando na agência que o último barco para o Japão seria o Buenos Aires- Maru; isso veio por verdadeiro transtorno em nossa vida. Que fazer diante dessa nova fase? Eu via a guerra de perto e preferia voltar ao Brasil. Riokai era confiante e achava que tudo se arranjaria, por via diplomática; queria por força voltar nesse último navio. Ficamos uns dias nessa terrível luta; afinal cedi e nos meados de setembro tomamos o Buenos Aires-Maru, que estava atracado no cais fazia dez dias. Pela Calle Corrientes andavam grupos de japonêses – alguns, Riokai tinha conhecido no Rio e em São Paulo. Ele estava todo feliz, dizendo “nós também vamos”. Todo o dinheiro ganho com a venda dos quadros de Riokai e os meus foi febrilmente empregado nos últimos dias em roupas, objetos, até num piano e uma máquina de costura portátil, a primeira exposta na cidade. Desde cedo ao anoitecer, que se comprava sem parar. No último dia adquirimos vinho, uisque, conservas, farinha, açúcar pois do Japão vinham notícias que já não se encontravam mais êsses gêneros. Riokai estava tão cansado que me disse antes de entrar no vapor: “Troque o resto de dinheiro em dólares”. A tristeza me tinha invadido a alma; não quis ver o navio sair do cais; tinha a intuição que entrava no ciclo infernal da guerra.

Foi uma triste viagem; nosso camarote era perto das privadas, permanecendo um cheiro infecto; a rota foi toda outra da que quando viemos, passando cinco dias depois pelo Estreito de Magalhães. Desde que o navio entrou no estreito, andava tão devagar que parecia parado, só montanhas de neve, o vento gelado soprando o dia todo, montes de gêlo como castelos de cristal. Os habitantes dessa estranha selva nos seguiam de perto, enormes, gaivotas de plumagem escura. Riokai fêz uma série de estudos dessas tristes e melancólicas paisagens – entrou num barco de salvamento no “deck” de cima; ficava com o corpo gelado, pintando o dia todo; eu, com a garganta dilacerada por um cruel resfriado, a ponto de não poder mais engolir.

A viagem prosseguiu entre mar e céu até Yokohama. Lá estava toda a família de Riokai à nossa espera. Tinham vindo seus pais de Formosa; tive más notícias de Ashiá (Ashiya) – logo pela minha sogra soube que o cachorro tinha sido esmagado por um caminhão na noite anterior ao nosso embarque – chorei meu lulu; também, que meu belo casaco de rat musqué trazido de Paris, os bichos tinham inteiramente dado cabo dêle pelo desleixo de Kyoko-san, a quem tinha recomendado cuidar. Yokohama – achei as ruas por onde passamos, de ordinário tão concorridas, ermas, tudo fechado, o restaurante onde fomos nem arroz tinha. Já não havia mais êsse produto. No dia seguinte estávamos em Kobe, o cais deserto, a polícia a bordo fazendo mil perguntas impertinentes. Alguns amigos vieram, mas estavam além do cais. Kobe, de costume tão agitada e animada estava triste, todo o comércio fechado. depois da alfândega custou para se achar um táxi.

Nessa tarde de outono, da estrada que ía de Kobe pelo Kokudo, os plátanos iam largando suas folhas vermelhas e amarelas, associando-se à  minha tristeza… Alguns dias depois Riokai foi a Tókio para dar contas aos membros do Gaimusho do que tínhamos feito no Brasil; êle fêz a esse respeito uma conferência em que foi louvado; nossos trabalhos feitos durante a viagem ao Brasil e Argentina foram expostos no Mitsukoshi (16) mas todos tinham a opinião voltada para a grande tensão entre o Japão e a América; a guerra da China que não estava terminada; a arte ficava bem atrás dêsses fatos importantes. Dois meses depois que chegamos era declarada a guerra, todos pensavam que ía durar dias, mas durou anos.

(16) MITSUKOSHI é a maior rede de lojas de departamentos do Japão. Criada em 1673 por Takatoshi Mitsui em Edo (atual Tokyo) com o nome de Echigo-ya, a loja foi a origem da fortuna e posterior formação do “zaibatsu” (conglomerado industrial e financeiro) da família Mitsui. Em 1908 a empresa abriu uma grande loja de departamentos estilo europeu em Tokyo e atraiu consumidores organizando exposições de arte. A rede foi rebatizada “Mitsukoshi” em 1928. Depois da Segunda Guerra e após enfrentar dificuldades financeiras, a rede se recuperou financeira e comercialmente, enfatizando moda e arte. A partir de 1971, com a abertura de uma loja em Paris, a empresa se internacionalizou, com filiais em Roma, Dusseldorf e Singapura, especializando-se em expor obras de artistas contemporâneos japoneses, além de possuir 15 modernas lojas no Japão.

Em meados de 1942 houve um navio de troca de diplomatas e o consul A. de Magalhães, que estava prêso em sua residência em Suma, pôs meu nome na lista de passageiros e me predisse o que ía acontecer. Mas eu não tive a coragem de partir e deixar Riokai… Recusei essa ocasião única por amor e fidelidade a meu marido… O país inteiro esperava a Vitória – eu nunca pensei que o Japão ganhasse; depois de quatro anos de guerra com a China, começar nova guerra com a América, foi uma diabólica loucura inspirada por Hitler; foi êle o causador da desgraça do Japão, a sua sombra infernal.

Atrás de nossa casa havia uma importante linha férrea, que ía do norte ao sul do país; por ali passavam todos os dias os trens repletos de soldados que gritavam pelas porteiras Banzai (viva o Japão), os coitados, mal sabiam êles que sair do Japão era morte certa; nenhum navio de guerra partia sem ser torpedeado mais adiante; as águas japonêsas estavam infestadas de submarinos americanos. O Japão foi entristecendo, os mercados fechados, a ração cada vez mais reduzida. Os jornais e o rádio só anunciavam vitórias.

De fato, no princípio o Japão conseguiu ir longe: Indo-China, Filipinas, Hong-Kong, todas as ilhas do Pacífico, a Mandchúria mas foram vitórias efêmeras. O govêrno militar só pregava à população os maiores sacrifícios. Não havia gasolina e foram todas as conduções suprimidas, os carros particulares tomados; só ficaram os bondes elétricos, de longe em longe e os trens onde era quase por milagre que se conseguia entrar; além disso, para se viajar precisava-se de uma licença da polícia.

Eu e Riokai resolvemos pintar o que nos rodeava, paisagem era só por perto, as flores de nosso jardim, croquis, um posava para o outro; assim fiz o retrato de Riokai, de pulover azul, sentado perto de sua caixa de tintas – está no meu atelier e o vejo todos os dias. O que nos interessava na nossa vida era trocarmos idéias; líamos muito, e comentávamos nossas impressões; os dias se passavam em Ashiá entre o trabalho e o estudo, visita aos amigos que moravam perto, passeios de bicicleta à beira-mar e a esperança de dias melhores. Houve ainda uma exposição, que fomos ver no Daimaru (17), e Akashi de crisântemos; essas maravilhosas flores, belas como sempre, não conheciam os malefícios da guerra. Suas cores suaves e outras vibrantes de delicado perfume; há sociedades no Japão de cultivadores especialistas em crisântemos; muitos apresentam uma flor só de perfeição absoluta com suas folhas recortadas verde-escura, esmeralda. Desde a mais remota época, que o símbolo imperial foi o crisântemo de ouro de dezesseis pétalas. Essa flor inspirou pintores e poetas, nas decorações de leques, quimonos, lacas e quantidade de objetos de arte.

(17) DAIMARU é uma rede de lojas de departamentos com sede em Osaka. Atuando hoje fortemente na área de supermercados e restaurantes, a Daimaru começou em 1727 em Kyoto como uma loja de roupas. Desde 1960 internacionalizou suas operações, abrindo filiais em Hong Kong, Tailândia, Paris, Singapura e outros países. Atualmente está associada a outra grande empresa do varejo, a Matsuzakaya.

1943 apareceu sombrio e triste, promissor para nós das mais cruéis calamidades; a única alegria que tive nesse funesto ano foi o dar dia 1º de junho no Instituto Franco-Japonês de Kyoto, um recital só de músicas de clavecinistas franceses do século XVIII. Depois de jantarmos a convite do diretor do Instituto, sr. Marcel Robert, desci à  sala de concêrtos onde havia um soberbo piano Erard. Fui muito aplaudida pelo auditório, que era composto quase só de estudantes. Quando voltamos para casa, Riokai, me beijando, disse: “você não sabe quanta alegria me deu você ao tocar ontem à noite. Tirou várias fotos, com o grande buquê de rosas que recebi.

Daí em diante minha vida ía para um triste destino. O último dia do calendário ía me levar meu grande e incomparável amigo, o meu grande amor… Nos meados de julho começou êle a ter estranhos distúrbios que se localizavam na cabeça, nos olhos, via manchas vermelhas e permanente dor de cabeça; logo vieram outras perturbações cada vez mais graves. Em setembro fomos passar uns dias em Árima, lugar de altas montanhas com fontes de água fervendo; parecia que tudo concordava com a nossa angústia, quando senti uma espécie de trovoada e em seguida fortes tremores e violentas sacudidelas. Compreendi que era um terremoto – nosso quarto dava para profundos abismos; Riokai estava deitado e eu petrificada pelo mêdo; minhas mãos pareciam garras que se tinham grudado nêle. Tão calmo, êle me dizia “vai passar, vai passar”… Pensava êle melhorar com êsses banhos, mas qual, dali voltou pior. Os médicos não atinavam com a doença, mas quando tiraram as chapas da cabeça, a terrível moléstia se revelou, tumor maligno no cérebro. Eu não sabia que existia no mundo doença tão medonha. Em outubro êle foi internado no hospital da Universidade de Ossaka. Foram três meses de cruciantes sofrimentos, para êle e para mim. Eu tinha uma amiga desde que cheguei ao Japão, Natsuko Ueno, que não me largou na desgraça. Ficou me ajudando, compreensiva, falava a minha cunhada Kyoko-san que não me fizesse sofrer ainda mais com suas impertinências. Devo muito a esta querida amiga; ficou para sempre na minha gratidão. Não havia recursos, remédios, médicos, nem mesmo alimentos nesse hospital; tudo estava voltado para a guerra.

Dia 31 de dezembro a morte o levou. Eu fiquei muda, atônita, não compreendendo nada, de tanto sofrimento inútil. Fiquei ali na casa triste e vazia vendo-o por todos os lugares e ouvindo sua voz me chamando no jardim…

Eis o epílogo de minha vida de arte no Japão, estreitamente unida à vida e à  arte de Riokai Ohashi.

Viúva! Custei muito sobreviver a tão grande infortúnio. O sobradinho em que morava ficou triste, silencioso e no meu pensamento sómente persistia Riokai, pois há poucos dias estava ali na cama e eu podia ainda ouvir sua voz. Agora pairava a terrível verdade, o enigma estava m devorando.

Como os dias eram longos… janeiro, o mês mais frio do Japão, com dias curtos e escuros. Não podia fixar a atenção em coisa alguma, nem ler, nem pintar, até mesmo êsses refúgios me eram vedados. Assim passava o tempo sózinha, pois senti como que abandonada mesmo pelos amigos quando sentem os estigmas da morte, a tristeza da alma… e ninguém quer contato com êsses párias… Solidão completa, passei vários meses no abandono. Minha cunhada Kyoko sumia e eu sentada no degrau da porta ficava tirando matinhos, como por ser inverno era raro. No jardim tudo era tristeza.

A guerra persistia cada vez mais feroz. Passados alguns dias fomos levar as cinzas de Riokai à Hikone, no templo em que êle conhecia o Bonzo. No Japão existe um costume que sempre achei horrível: depois da incineração repartem as cinzas do morto entre os membros da família que a depositam dentro de um saquinho no oratório da casa e o restante atiram num templo comum em Kyoto. Empenhei-me para que o guardassem inteiro em Hikone as cinzas de Riokai, pois sempre tive horror a essas coisas fúnebres e para tratar disso imenso foi meu sacrifício.

Para ir a Hikone nesses malditos templos era uma dificuldade, tomava-se o trem até Kyoto, lá baldeava-se para um outro comboio até atingir Hikone. Os trens iam apinhados, bombardeavam as linhas e levavam muito tempo para consertá-las. Hikone era uma pequena cidade da província e eu, estrangeira era logo notada, apesar de estar acompanhada pelo meu cunhado e Kyoko-san, ficavam pasmados ao me verem.

Fomos várias vêzes para as cerimonias do templo. Para a volta era duvidoso conseguir lugar no trem que vinha superlotado de longe e parava muito pouco. Certa vez viajei no lugar em que os vagões se unem, de pé e sacudida pelo correr das rodas, chegando em Kyoko desfalecida.

A minha distração em casa era a de colhêr nas montanhas as flores de pinho que o vento fazia cair e que se encontravam perto das cêrcas. Serviam para fazer fogo na cozinha, pois não havia gás, nem eletricidade, nem lenha, nem carvão e nem mesmo fósforos, tendo-se que empregar o sistema milenar de atrito entre duas pedras para se conseguir uma faísca.

Ia-se ficando cada dia mais pobre e miserável. Ração só tinha o nome, já não davam mais nada e cada um que se arranjasse para não morrer de fome.

Conhecia uma Senhora, cujo marido tinha trabalhado no escritório de uma companhia em São Paulo. Apiedou-se de mim e, à s vêzes, ia eu à sua casa para ver se o “hiakucho” (camponês) havia trazido alguma coisa. Às vêzes vinham verduras, nabos, couves, batatas e quando se tinha muita sorte também ovos. Levava êle essas coisas numa mala de roupas e de madrugada para disfarçar. A boa amiga dividia comigo algumas verduras, entretanto para eu chegar à  sua casa era um não acabar de perigos. Tomava um trem na linha de Hankin, o qual vinha repleto. Era preciso entrar de gatinhas por entre as pernas dos passageiros! Estava eu protegida por um capuz e uma capa acolchoada, a fim de atenuar os estilhaços em caso de bombardeio. Levava uma sacola prêsa às costas com os meus documentos, jóias e remédios, pois não sabia se ao voltar encontraria minha casa no lugar.

O trem passava por uma ponte estreita, sobre um rio sêco e cheio de pedras. Pelo fato de estar superlotado inclinava-se perigosamente e eu fechava os olhos de mêdo. Chegando a Nishinomiá (Nishinomiya), estação de entroncamento de linhas, demorava um bom tempo e assim eu podia ver as fundas covas por toda parte, às quais chamavam de abrigos. Sómente terra e nenhuma cobertura. Houvesse algum aviso de aviões inimigos e todos teriam que sair do trem e ajeitar-se ali. Quando as bombas caiam naqueles buracos soterravam os abrigados.

Em Kobe existia uma rua comprida e larga que ia do centro até as montanhas e de um lado e outro só existia essa espécie de abrigo. Durante a noite muita gente ali caia e não mais podia sair.

Não havendo nenhum aviso de aviões inimigos o trem novamente se movia. Descia eu em Mokudonosor, andava meia hora a pé até a casa daquela amiga. Às vêzes, o tal camponio que trazia as verduras não tinha vindo. O meu coração batia quando ela dizia: veio! Levava uma trouxa que punha sobre a cabeça e aí começava o suplício do mêdo. Já ia escurecendo e todo homem que eu visse, mesmo de longe, me gelava, pensando ser da polícia civil. Era bárbaro o que se contava acêrca de pessoas que tinham sido apanhadas com alimentos de qualquer espécie. Eram levadas à delegacia e de lá à s prisões, tanto as que compravam como as que vendiam, sendo confiscado o produto.

Chegando novamente em Mokudonosor (estação perto de Ossaka) esperava o trem. Era preciso, porém, que não houvesse bombardeios nessa cidade, caso contrário só teria condução no dia seguinte e eu na plataforma tremia de terror, com meu capuz, capa acolchoada e calças, com um calor de trinta e cinco graus. Mas, pensava eu na minha preciosa trouxa que trazia, nos nabos, cenouras, batatas… e dizia lamentando: Senhor! porque vim? poderia ter evitado êsse perigo e êsses sustos!

Não chegando o comboio de Ossaka teria que passar a noite em um daqueles buracos a que chamavam de abrigos. Não, nunca mais virei! E nisto o trem aparecia numa curva e logo me enfiava por entre as pernas dos que estavam em pé, com meu fardo.

Lá ia eu pelo mesmo caminho, parando em cada estação até chegar a Ashiá, onde eu fazia um supremo esforço para poder sair do trem ficando novamente na plataforma. Kyoko me esperava com a bicicleta e pondo tudo em cima da mesma e sem dar uma palavra ia-se andando até a casa. Muitos me perguntavam porque Kyoko San não ia em meu lugar. Ela, porém, preferia morrer de fome e expor-se como eu a sustos de toda sorte.

Comendo o menos possível, tinha-se alimento por alguns tempos. Os dias de 1944 passavam vagarosos e incertos e eu me recordava de meu recente passado, para isso tinmha lazer.

Será que Riokai tivera o horrível pressentimento de seu próximo fim? No triste ano de 1943, êle que nunca havia feito nenhum autorretrato, fêz diversos a óleo, desenhos a sépia onde se representava com uma expressão atormentada. Outra coisa inédita, eu sempre detestei seguros de vida, o govêrno estava fazendo propaganda para que todos fizessem. Não queria que Riokai aderisse. Um dia bateram à porta e êle atendeu; um empregado da companhia de seguros, disse-me depois que êle o fizera em meu nome. Fiquei triste…

Uma coisa a que nunca me acostumei no Japão foi com os terremotos. Certa ocasião acordei com as trovoadas subterrâneas e logo depois a casa começou a mexer-se. Um grande terremoto para mim foi o de Ossaka. Ao chegar no Matsuzakayá, ouvi como que uma verdadeira orquestra, produzida pelos vidros das janelas de todos os andares. Olhando para o forro, vi-o mexendo, também as portas e o edifício todo vibravam. Estava eu gelada de terror e queria fugir para a rua, mas me agarraram dizendo que fóra era muito mais perigoso. Os telefones rompidos e nada de eu poder comunicar-me com Riokai.

Todos êsses fatos nada eram em minha vida atual. Ver todos os dias o meu pequeno atelier vazio e desolado e tudo quanto êle tanto amara. Tanto zêlo. sua caixa de pintura, tintas, pincéis, roupas, no quartinho pegado durante muito tempo não entrei, ali estava tudo o que êle tinha tanto apêgo… que coisa cruel a morte. Nada se leva do que tanto se ama. Muitas vêzes pensei em sair dessa casa, mas como não havia meios de se arranjar outra tive que ficar à força nessa sinistra morada, onde tudo me lembrava minha recente tragédia. Tudo a respeito da guerra ia piorando durante êsse ano de 1944. Em junho fiz exposição das telas de Riokai no Daimaru de Ossaka e apesar da guerra foi concorrida, vendi uns quadros. Ainda em outubro de 1944, fiz em Tókio no Mitsukoshi, a exposição dos quadros de Riokai, tendo sido um fato heróico na minha vida. Eu e minha cunhada Kyoko fizemos a embalagem, costuramos as telas com lona e tivemos que carregar todo êsse pêso até a estação que formigava de gente que esperava dias para embarcar. Uma horrível confusão passei com aquêles embrulhos e mais uma sacola à s costas com alimentos para uns dias, e a angústia de não poder embarcar. Só mesmo a título de promessa tentava-se semelhante viagem!

Tanuki (texugo)! foi a última alegria que dei a Riokai, quando êle voltou do hospital em vinte de dezembro de 1943. Como êle gostava muito de cachorros, fui a Kobe e ainda encontrei uma casa que vendia animais, ninguém queria, como nutrí-los? Comprei um cachorrinho de pura raça japonêsa Nihon-Ken, lindo, cor de pão torrado, orelhas triangulares e têsas, focinho prêto. Custei a trazer êsse bicho no trem, comprimido e de pé, mas Riokai ficou tão contente que compensou e, meu cunhado Hideo a dizer que eu estava louca em trazer êsse cão. Coitado, sofreu horrores durante a guerra, conheceu os tormentos da fome! Até roupas, toalhas, meias, papéis, tudo sumia e depois eram encontrados nos escrementos. Ficou só com a pele nos ossos, esquelética e por algum tempo foi preciso escondê-lo, pois quem possuia animais precisava dá-los ao govêrno, suas peles eram utilizadas para agasalhos dos soldados.

Os americanos a partir de 1945 vinham cada vez mais a miúdo bombardear as cidades abertas, primeiramente Nagasaki, Tokio, Yokohama, Nagoya, Kobe, Ossaka e Hiroshima por último.

A princípio só vinham à noite e a pouco e pouco a qualquer hora ouvia-se um tremendo ronco e bombardeios. O troar dos canhões anti-aéreos enchendo o ar de terríveis estrondos. Nos últimos meses antes do armistício as incursões de aviões inimigos B-28 vinham em grupos de trezentos, num barulho infernal, voando perto dos telhados, jogando bombas incendiárias a torto e a direito sobre quarteirões inteiros residenciais. Vi certa noite arder em alucinante fogueira Kobe! Não davam o menor valor às vidas humanas e mal se sabia quando terminava o dia ou a noite. Além disso não havia alimentos de modo algum, mas a angústia era tanta com os tremendos incêndios que não se pensava em comer. Eu só queria salvaguardar as pinturas de Riokai, pois esperava que minha casa ardesse. Pedi para alguns amigos ricos de Ashiá que guardassem num quarto especial as telas de meu Riokai. Também havia conseguido por meio de amigos, numa roça longe, lugar para meu piano de cauda numa estrebaria. Já estava tudo combinado. O camponês deveria vir buscá-lo em um carro de bois, mas quando êle soube que eu era estrangeira não quis mais!

Dia cinco de agosto Ashiá foi quase que totalmente arrasada. Eu tinha passado a noite com uns amigos perto da praia e vi de perto as labaredas que cresciam de todos os lados, o crepitar do fogo, que faz sumir tudo. Pensei que iria ficar nessa noite medonha. O mundo inteiro soube da terrível calamidade que aconteceu em Hiroshima, menos no Japão. Os jornais deram uma notícia ínfima sobre uma bomba que havia aniquilado algumas pessoas, quando foram destruídas em alguns segundos duzentas e cinquenta mil vidas fóra os doentes que até hoje permanecem. Felizmente essa monstruosa verdade não foi divulgada. Ter-se-ia morrido de horror.

Dia quinze de agosto veio por um têrmo a essa devastação de cidades e vidas. O Armistício! A paz incondicional!

Ao meio-dia falou o imperador Hirohito. Parece que ninguém compreendeu, tão ruim estava o aparelho. Ninguém acreditava, grupos de homens e mulheres andavam pelas ruas em ruínas chorando e dizendo: perdemos a guerra! Ainda ontem afirmavam que todos nossos sacrifícios iam ser compensados pela vitória. Enganaram-nos! Mas, todos estavam tão cansados que nem se podiam crer nessa tão grande sorte de não ter mais os cruéis bombardeios. Ficava-se dormindo o dia todo, não se podia crer na delícia de não ser metralhado.

Nos últimos dias antes do armistício não se podia mais sair de casa… e nem entrar: metralhavam a gente a domicílio! Já se podia comprar alguma coisa: nabos ou couves no mercado negro, sem ser prêso e muito tempo se passou assim.

Por toda parte só ruinas, lixo, moscas e ratos invadiam o forro das casas e de lá caia sobre a gente um pó prêto movente, eram as pulgas provenientes da urina dos ratos e provocavam coceira no pescoço e inflamações pelo corpo. Kobe era um monte de lixo.

tudo o que não havia sido aniquilado estava fechado. Viam-se famílias inteiras, encostadas nas paredes da estação. Ficavam ali sem alimento, sem amparo, sem lar. Tinham perdido tudo e muitos morriam de fome à espera da Divina Providência.

As tropas de ocupação americanas entraram depois de meses. Eu tinha ido a Suma e na volta passando por Kobe foi que, precipitadamente fecharam as portas da estação e começaram entrar os batalhões americanos. Os mais valentes na frente, barbudos e de mais catadura, empunhando os fuzís e arrastando canhões e apetrechos de guerra. Temiam represálias do povo, mas nada. Toda gente fugia e tinha mêdo dêles. Depois chegaram as tropas negras, batalhões intermináveis. Os japonêses estavam apavorados, nunca tinham visto pretos. Pouco a pouco o Japão inteiro encheu-se de soldados americanos, nas cidades e roças, por toda parte onde se ia lá estavam êles de farda caqui, bem alinhados, bem calçados, bem nutridos. Tinham pulseiras de relógio, anéis com pedras de cor e diziam que era o govêrno japonês que pagava tudo isso, inclusive os bordéis! Corriam de jipes e andavam, nas farras. As moças se entregavam em troca de alimentos, eram só festas, bailes e ao lado, diante de nossos olhos, famílias inteiras morrendo de fome. Comecei a visitar meus amigos, o sr. Harada e família que tinha sido um ótimo amigo de Riokai e que muito me ajudou. A mãe de uma boa aluna, a sra. Matsui, o pintor Koisso, o poeta Takenaka, perderam tudo nos alucinantes incêndios de Kobe. A sra. Celeste Cabral, esposa do consul de Portugal, os Coutos que moravam perto de Kobe, Henriette Hauchecorne que era professora no Instituto Franco-Japonês de Kyoto.

Tive como alunos de pintura dois oficiais americanos. Um dêles falava o francês, o sr. Ide. Eram tão altos que se abaixavam para poderem entrar na porta de minha casa, pagavam as aulas com maravilhosas rações. Passei a conhecer as melhores conservas americanas, perús inteiros. Era só aquecer no banho-maria e tinha-se um fumegante bolo, delicioso e macio. Bombons de chocolate, caixas inteiras de cigarros. Fazia anos que tinha me esquecido dessas doçuras da vida… Eu e minhas cunhadas comíamos e ainda dava para presentear meus amigos japonêses. Ficaram um ano comigo êsses alunos, eram gentis e bem educados. Apresentaram-me ao Comandante em Chefe das tropas de Kobe, sr. Kutcheon que gostava de pintura e que me comprou várias telas de flores, o que me ajudou viver por mais dois anos. Também arranjou para que eu expusesse meus quadros em Yokohama no grande hotel, mas nada vendi.

Como minha casa não tinha queimado, ia vendendo os cortes de lã que trouxera de Buenos Aires, a pêso de ouro e assim ia vivendo onde tudo subia de preço devido a terrível inflação. Tinha também uns alunos de piano, mas isso nada rendia.

Nessa época produzi muito pouco, estava desanimada e desamparada, apesar de Riokai ter me deixado uma provisão de telas, tintas, pincéis em quantidade suficiente para abrir um comércio. Até hoje tenho parte dêsses materiais. essa fartura, porém, estava longe de me estimular.

Fiz uma exposição de trabalhos meus em Kobe a convite de uns colegas, que se encarregaram de armar a exposição, porém nada vendi.

Pintava paisagens pelos arredores, mas tão triste e sempre com Riokai no pensamento… O último ano em que pintei foi 1948, perto de Takarazuka, Shu-Kugawa. Só pensava nas obras deixadas por Riokai, sua carreira brutalmente rompida. Meu coração dizia que só eu poderia salvar do esquecimento seus trabalhos, escrevendo sua vida, publicando suas obras. Essa idéia cada vez tomava mais força, até tornar-se uma realidade.

Os obstáculos eram grandes, não tinha meios, ficava caríssimo, em tudo surgiam dificuldades. Não havia papel nem mesmo no câmbio negro, placas de metal para impressão, cores, gente especializada para êsse trabalho de arte. Tudo estava desorganizado.

Já tinha feito um esboço sobre a vida de Riokai em francês. Estive várias vêzes em Tokio, voltando sempre decepcionada, pois várias telas que desejava reproduzir em cores com tradução em japonês nenhum literato queria fazer. Todos os dias trabalhava nessa obra que para mim era gigantesca, pois minha saúde ia mal e no mês de abril pensei que fosse meu fim. Uma crise cardíaca como nunca havia tido e que curei sem remédio algum. Vieram médicos, mas as farmácias continuavam fechadas e vazias.

Restabelecida, continuei vendendo tudo quanto podia para a publicação do livro. O sr. Marcel Robert, diretor da Casa Franco-Japonêsa de Kyoto, muito me ajudou nessa tarefa apresentando-me ao grande escritor Mijamoto Massakio que aceitou fazer a tradução.

Em outubro de 1947 tive a imensa satisfação de ver o belo livro com algumas obras de Riokai Ohashi, publicado pela editora de livros de arte Nippon Insatusu Cie. de Kyoto. Foi uma alegria tão grande que me compensou de todos os tormentos, dúvidas, dificuldades incríveis que cercaram a publicação dêsse livro e que considero um triunfo na minha vida.

Na primeira exposição do livro francês, depois da guerra, foi exposto juntamente com as telas “ruas” de Paris, na casa Franco-Japonêsa de Kyoto. Para a inauguração veio o embaixador e vários diplomatas francêses a quem vendi algumas ruas de Paris que foram muito apreciadas por êles.

Nesse mesmo ano comprei a casa onde morava em Ashiá, vendendo os cortes de lã e mais um brilhante que foi de minha mãe. Tudo se comprava e se vendia por verdadeiras fortunas.

O que me preocupava era não poder ler os caracteres chinêses e não poder escrever. Falava o suficiente para me fazer compreender, porém isso não bastava e tinha sempre que pedir a outros para escrever e me explicarem a resposta.

Nada de receber notícia do Brasil, o que me aumentava a tristeza e a idéia de abandono. Muitos japonêses que conhecia e vizinhos recebiam pacotes e cartas pela Cruz Vermelha, só para mim é que nada vinha! Certo dia, porém, recebi num pacote um verdadeiro tesouro. Tinha de tudo, tudo o que eu tanto desejava: sabão, açúcar, chá, café, fósforos, agulhas, coisas preciosas, e tempos depois mais outro pacote. Eram meus bons e generosos amigos de Buenos Aires, sr. e sra. Yokohama que me mandaram pensando na minha extrema penúria. A primeira carta que recebi do Brasil foi de uma querida amiga, Maria Paula de Barros Monteiro, uma carinhosa missiva me sugerindo voltar. Mas como? Não havia navios para o Brasil, tinha que se ir via São Francisco atravessar a América até New York e dalí esperar um navio até o Brasil.

As dificuldades eram enormes, impossíveis, incríveis. A verdadeira batalha que empreendi foi arranjar licença para fazer o passaporte que levou um ano e meio para conseguir.

Vendi a casa e meu belo piano de cauda. Adquiri uma casinha que estavam construindo para minha cunhada Kyoko para não a largar na rua. Dei-lhe as mobílias, a máquina de costura, e algum dinheiro no banco deixei uma parte dos quadros de Riokai que não podia trazer, em prateleiras bem arrumadas na sala da frente.

Que tristeza dividir, liquidar tudo o que foi meu doce e trágico passado: pinturas, livros, roupas, objetos de Riokai me falavam com eloquência…

O sr. Kodera, prefeito de Kobe, antes que eu partisse (um senhor de idade que conhecia e apreciava o Brasil) me incumbiu de levar duas riquíssimas bonecas japonêsas com quimonos bordados a ouro, dentro de suas caixas de vidro – uma para o Prefeito do Rio de Janeiro, sr. Mendes Moraes, outra para o Prefeito de São Paulo, sr. Asdrubal E. da Cunha e uma menos importante para mim. Também me deu para entregar oficialmente duas cartas, uma a cada Prefeito.

Os dias iam se acabando. Tive que ir, devido ao passaporte, diversas vêzes a tokio, pois era do Quartel General Americano que saia a ordem de embarque, mas não era muito certo, havia gente que no último momento ficava impedida de embarcar. Os exames médicos eram minuciosos e durante um mês tive que ir a Kobe fazer toda sorte de injeções contra varíola, tifo negro, peste bubonica, febre amarela… algumas me levaram para a cama com mal-estar e febre alta. Além disso radiografia dos pulmões, exame de fezes minucioso, porque em caso de vermes era proibido embarcar; exame de sangue e ginecológico (felizmente fui isenta. Era o govêrno americano que exigia todos êsses exames).

Os japonêses não podiam sair do Japão e aos poucos estrangeiros que queriam sair, criavam toda sorte de dificuldades.

Todos os dias vinham jornalistas para me entrevistar e eu ocupadíssima com numerosa bagagem espalhadas pela casa. Não tardou que eu tivesse uma gripe das bravas que me levou à cama com febre alta, garganta esfolada, dor de cabeça alucinante. Pensei não poder embarcar e minhas cunhadas foram colocando de qualquer jeito nas malas o que estava pelo chão. Isto me causou depois sérios transtornos, pelos documentos necessários que eu não achava mais, pensando tê-los perdido.

Dia 19 de março de 1949 amanheceu com um vento gelado e tempestade de neve. Fiz um esforço supremo para vestir-me e arrumar as maletas e dizer adeus a Tanuki. Já estava na porta o automóvel da sra. Matsui me esperando, que me levou até o cais.

Os flocos de neve enchiam o ar e as montanhas de Ashiá estavam todas brancas. Nesse triste cenário meu coração silenciosamente chorava. Adeus Ashiá, adeus Riokai querido… fui tão feliz e infeliz nesses sítios. Tiritava eu no meu paletó de raposa, com um lenço na cabeça e minha febre. A gripe estava se instalando em mim por quase um mês.

No cais foi que vi o cargueiro holandês “Straat-Malakka” que iria me levar ao Brasil em três meses e uma semana.

De todos os lados surgiam amigos vindos de longe. Recebi um enorme ramalhete de cravos vermelhos que ainda mais me entristeceu. Um embarque assim para quem nunca mais volta tem alguma coisa de fúnebre.

Subi a escada. Meus amigos passaram a tarde comigo até o gongo dar o sinal da partida. Aí foram as despedidas definitivas e minha tristeza e angústia pioraram meu estado.

O “Straat-Malakka” ia se afastando do cais e a única passageira no convés era eu com olhos inchados de tantas lágrimas e agitando o lenço em um último adeus. Uma nova vida começava para mim.

O meu camarote ara grande, todo branco e novo, com uma janela para o mar. Os “boys” eram chineses e falavam muito pouco o inglês.

No dia seguinte aportamos em Nagoya e recebi a visita de um casal amigo, sr. e sra. Hatia que conheci no Rio em 1940. Eram ricos industriais que me contaram as mágoas que haviam passado durante a guerra e que tinham perdido tudo. E agora não os deixavam voltar ao Brasil. Estavam passando verdadeira miséria.

Sentia-me cada vez pior, parecia que me haviam raspado a garganta e já não podia engolir, uma tosse violenta que levaria dias e noites sem cessar.

Yokohama me reservava ainda tristes momentos. Toda a família de Riokai ali veio: meu sogro, minha sogra, minhas cunhadas e o irmão de Riokai, Hideo. Estava eu de cama e todos tristes choravam. A minha sogra fêz-me prometer que voltaria depois de um ano. Coitados! Todos êles foram bons para mim. Senti-me, com tantas emoções, acabrunhada que meu estado piorou depois que êles sairam. Mandei chamar o médico de bordo, um chinês miúdo e sêco que me disse em péssimo inglês que eu estava passando muito mal e que precisava sair do navio, por não haver acomodações para doentes.

Isso me transtornou. Depois de haver liquidado tudo no Japão fiquei curtindo minha nova angústia, quando bateram à porta. Fui abrir. O Comandante, alinhado na sua farda azul, cortês e falando correntemente o francês, depois de sentar-se disse-me: “Ouvi dizer que a Sra. quer descer do navio, é verdade?” Apressei-me em responder: Não, Sr. Comandante! Estou bem melhor e de modo algum quero sair, interromper uma viagem que esperei anos para realizar. Respondeu-me êle: “Fique sossegada, pois só eu posso fazer descer um passageiro!”

Depois de ouvi-lo melhorei. Passei alguns dias deitada sem trato algum, sem comer e sem beber, tossindo sem parar. Pensava com serenidade: o mar será meu túmulo.

CHANGHAI

Em Changhai não desci. No salão estavam as autoridades chinesas de Chankai Chek (Chiang Kai-shek).Éramos só dois passageiros: eu e um rapaz australiano.

Os chinêses estavam ríspidos. Os comunistas já se achavam nos subúrbios e a queda de Changhai era iminente. Nesse porto embarcaram alguns passageiros, entre os quais um grande gordo polaco que iria ser meu vizinho de camarote. Este passageiro seguiria até o Rio e sobressaiu-se pela voracidade em comer, pois tinha na mesa um longo cardápio e repetia os pratos enchendo de surprêsa os passageiros e de indignação os criados.

Em Hong-Kong já me achava melhor. Recebemos ordem para descer a fim de sermos vacinados contra febre amarela, isto no hospital da cidade.

O navio parou longe do cais e a tripulação inteira teve que ir. Mal podia eu parar de pé e tive que descer a longa escada de cordas encostada ao vapor. O mar estava agitado e assim entrei na barca que nos levou até o cais.

Depois de ter ido ao hospital, dei uma volta pela cidade, fui ao correio. O centro estava animado, os bancos guardados por sentinelas armadas de fuzís com baionetas. Tomei uma limonada em um bar, pois há anos não sabia o gosto do limão. Novamente me achei subindo a escada de cordas do “Straat- Malakka” e suspirei de alívio por haver conseguido voltar.

Novos passageiros já haviam embarcado: um casal de inglêses, ela moça e conquistadora, êle velho e sem pretensões. Os namoricos com os oficiais se faziam nos corredores e à s vêzes defronte à porta do camarote do velho marido. Todos os dias essa dama de copas estreava um vestido que dava uma nota alegre ao ambiente. Também a velha inglêsa que embarcou em Hong-Kong parecia curiosa em seus trajes de mocinha, com seu rosto enrugado como papel crepon. Apresentou-se no dia do aniversário da rainha Juliana com um vestido de filó cor-de-rosa e uma guirlanda de rosinhas nos cabelos, as mangas curtas exibindo seus braços com peles flácidas. “Miss” Violet tinha 82 anos de idade.

Nesse dia festivo todos os oficiais, capitão e passageiros (12) tinham ido ao salão desde a manhã para festejar o aniversário da rainha. Uisque em profusão e cantos. Até eu que nunca havia tomado essa bebida recebi um grande copo, o qual sorvi aos goles, como se fosse fogo.

Todos cantavam de Roterdam a Amsterdam de Amsterdam e Roterdam e exclamavam: “Viva a nossa Rainha Juliana! Longa vida e feliz govêrno. Viva!”… Depois fomos para a mesa onde foi oferecido um magnífico banquete, coisas deliciosas, tudo servido em toalha branca, imaculada, belas porcelanas, talheres de prata e finos cristais. O luxo nesse navio era a mesa com iguarias bem feitas e em profusão.

Agora tinha tempo de relembrar meu passado e interrogar o futuro. Todos os portos que eu conhecia, exceto Penang e Manila, foram anunciados, mas eu já não tinha mais aquêle interêsse feliz de quando passei com Riokai em 1940. Convenci-me de que o melhor seria fazer como as conchas – fechar-me na minha casa de madrepérola, sendo os contatos com o mundo, só o sussurro do mar e o ritmo das máquinas da ilha flutuante em que estava vivendo.

A única coisa que aproximou um dos outros era a mesa. Em Manila, desci com o camarada Ivanovitch – êle só pensava em comer as frutas do país, nada mais o interessava. O calor em Manila era tórrido. O cais, longe do centro, ruínas por toda parte; diziam terem sido os recentes bombardeios.

Depois de fretar um táxi, percorremos grande parte da ilha. Gostei de ver as “carromatas” (caleças) no estilo espanhol com duas grandes rodas pintadas de vermelho, puxadas por fogosos cavalos enfeitados de pompons vermelhos. Achei lindo o traje nacional das mulheres, enormes mangas de organdi como se fossem asas, gracioso chale em ponta atrás e cruzando na frente sobre um corpete bem ajustado, a saia branca e comprida de baixo aparecendo toda bordada. Diziam que era um traja caríssimo e que era o motivo pelo qual se viam poucos. Admirei-me também com o número elevado de conventos e igrejas, sendo os subúrbios muito pobre habitados pelos nativos.

Para voltar ao navio, entramos numa limusine toda nova, verde-alface. Com os últimos raios do sol, subimos a escada do Straat-Malakka.

O cais estava entulhado de grandes caixas de pinho, sacos, etc. Ia-se trabalhar toda a noite para carregar nos porões do navio.

EM TRÂNSITO ATÉ SINGAPURA

Até lá, mar e céu, mais oito dias. Lia, pensava, escrevia, desenhava. À tarde ia fazer croquis no deck e vêr os peixes voadores – lindos, furta-cor – lá dentro do mar deviam estar sendo perseguidos; procuravam fugir, alguns caiam dentro do vapor e adeus, vida!

Também se via o dorso escuro dos tubarões, fazendo escolta em caso de alguma eventualidade…

O mar, muito calmo, se movendo para dar passagem ao vapor; as noites, profundas e estreladas, faziam-me sentir ainda mais a solidão. Juntos vimos essas mesmas estrêlas, êste mesmo céu profundo. Amarga recordação dos tempos felizes…

Não podia conversar com outros passageiros por falar muito mal o inglês, nem jogar bridge, nem flertar. Depois do jantar ia ao salão “fumoir” – ficava vendo os viajantes se ajeitando nas mesinhas quadradas de bridge, os “boys” chinêses levando uísque e cerveja. Isso iria até de madrugada.

Eu pensava quanto longe me achava dessa gente. Ninguém para trocar uma idéia. A cada porto eu havia feito croquis a lápis e a óleo, as paredes do meu camarote estavam em permanente exposição, que fazia a admiração dos “boys” chinêses, que vinham apreciar meus trabalhos. Eram os únicos no vapor que se interessavam por arte…

SINGAPURA

Por entre ilhas verdes, o Straat-Malakka, numa bela tarde, entrou em Singapura. Ia ficar parado uma semana neste porto.

Um calor abafador nos acolheu. Até se chegar ao centro, que era longe, pude ver quarteirões pobres, superpovoados e sujos, ruas estreitas onde os cheiros de diversas proveniências enchem o ar, incenso com baforadas de alimentos fritos feitos em forninhos na porta da casa.

Todas as indianas de sari, usando braceletes nos tornorzelos e anéis nos dedos dos pés, entre os cílios ou na asa do nariz, uma pedra preciosa incrustada.

No centro, o estilo dórico para os edifícios públicos, com suas colunas e escadarias, teto de templo grego bem ao gosto dos inglêses. Viam-se indianas elegantes, de saris de cores vivas, ornadas as beiras de franja de prata ou ouro; muitas têm grandes olhos, que lhe tomam uma boa parte do rosto. Elas têm muita linha no seu andar solene. Os homens, muitos usam a roupa ocidental, mas todos de turbante – aí pode-se ver a casta, a religião, etc. Nosso chofer ostenta uma vasta barba branca e um turbante cor-de-rosa!

Visitamos alguns templos induístas, com profusão de deuses até o telhado.

Singapura é uma mistura de todas as raças do oriente: chinêses, malaios, japonêses, árabes e europeus.

Houve um fato inesperado no vapor. Iam embarcar três elefantes. Destinados ao Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, os paquidermes estavam no cais, enjaulados. Tinham vindo dos confins da Índia, com seus donos, que gritavam e falavam aos elefantes.

De cima do navio, eu apreciava êsse espetáculo único. Os curiosos enchiam o cais, esperando ver como seriam levados para dentro do vapor. Tiraram a tampa da jaula e depois de estar cada elefante bem amarrado pelo ventre, lá ia êle levado por um possante guindaste, que o depositava no deck traseiro do navio. Protestavam com fortes barritos, mas a habilidade dos homens era muito maior que a força dêles.

Foram todos acorrentados pelos pés. Nos primeiros dias, nada queriam comer. Com a ponta da tromba, como uma mãozinha, pegavam as mirradas maçãs, que levávamos. Depois de as provarem, jogavam-nas violentamente.

Todos os dias ia-se ver os elefantes, que nos olhavam com seus olhinhos minúsculos e inteligentes, suas enormes orelhas como leques, sempre em movimento.

PENANG

Pequeno porto da península malaia, com seu cais de tábuas desjuntas. Desci com miss Violet, para visitar um templo budista num arrabalde longe. Passamos pelo centro pequeno e pobre; depois de alguns quilometros de estrada de terra e capinzais de ambos os lados, apareceu o velho templo com sua larga escada de pedra, solene e altiva, seu telhado de pontas, recurvado, com suas telhas de porcelana verde como se fossem novas. Davam-lhe muita beleza.

No altar principal havia uma quantidade de serpentes nascidas na véspera! Na profunda cisterna ao lado, um enorme ofídio vivia. Fiquei horrorizada.

Na saída, um bonzo convidava os visitantes a deixarem o nome e um donativo. Eu dei uma ínfima moeda inglêsa. Miss Violet correu na frente para nada deixar! O bonzo, lá da escadaria, chamava-a como se fosse uma maldição.

Teremos agora muitos dias de mar e céu, para sair do Oceano Índico, e entrar no Atlântico.

O primeiro porto da África foi Mabasen, depois, Zanzibar, Dar-es-Salan, essas colonias sob o protetorado inglês, todas muito pobres.

Beira, Lourenço Marques, Colonias Portuguêsas, onde o prêto quase não é gente, cidades miseráveis e feias onde se sente um govêrno atrasado. Enfim, Durban.

DURBAN

Durban marca o maior percurso da viagem. Quase todos os passageiros desembarcam – desce também miss Violet, que a essa altura já não me conhece mais!

O navio vai ficar uma semana nesse porto para a limpeza geral. Todos os dias saio com o sr. Ivanovitch. O cais é longe do centro e tem que se ir a pé ou então num riquixá, espécie de aranha, com dias rodas e dois lugares, puxado por um homem, ataviado de plumas como um selvagem – os inglêses gostam disso.

Como já descrevi na viagem que fizemos em 1940, êsses portos em que tocamos, vou ser mais breve. Durban é uma importante cidade com seus grandes edifícios públicos, uma bela praça toda ajardinada, onde domina uma imponente estátua da rainha Vitória, em frente à  à“pera e as ruas que saem praça, de um lado e de outro, o belo comércio de luxo – imensas vitrinas com vestidos de noiva, padrinhos e convidados; grandes bazares e preço fixo, com lindas vendedoras de pele branca e cabelos louros; bares de estrita limpeza. Tomamos um bonde de dois andares, como em Londres, e vamos até o ponto final. Percorremos as ruas do centro, os bairros residenciais com belos jardins e os subúrbios nada de se ver prêtos!

Na véspera do Straat-Malakka partir, fui ao mercado de flores e comprei um enorme buquê de cravos vermelhos; mandei pôr na mesa, bem na frente do comandante. Ficou tão contente, olhava de perto e parecia aspirar o perfume das flores; o olhar em soslaio, percebi que êle beijava um cravo…

Sempre a possante voz da sereia, que me enche de nostalgia, estava anunciando a partida… As gaivotas, seguindo o vapor e depois a noite…

PORT ELIZABETH

Port Elizabeth. Toda a tarde fiquei no cais, pintando o Straat-Malakka. Havia alguns novos passageiros, um enorme tchecoslovaco, um casal de velhos alemães, que iam a Buenos Aires e que se lamentavam por terem sido roubados de todos seus haveres, assim que entraram no vapor! E mais outros viajantes, que iam a Buenos Aires.

Capetown. É inverno, faz frio e começa a amanhecer à s oito horas! O aquecedor do navio funciona. Abro a mala para tirar agasalhos de inverno, vestido de lã, luvas. O centro é longe; quero rever o Botanic Garden. Entro pela grande porta dêsse jardim; estou sózinha, andando pelas alamedas de platanos que desprendem suas folhas amarelas – e o chão fica coberto de ricas cores. Lembro-me daquele dia feliz em que passei por essas mesmas aléias com Riokai, mas era primavera e tudo estava verde… Sento-me um momento num banco para apreciar, adorar os quadrados de roseiras em flor – são só rosas perfumadas e belas, como se tratasse de uma festa para alguma divindade!

Estou de volta; mal posso andar com meu pesadíssimo casaco azul-claro feito de um cobertor americano, que consegui comprar no Japão. Sinto as vibrações do Straat-Malakka; sopra e se mexe; cada vez que sai do cais, parece que habito o peito de um enorme gigante. O mar bate contra seu corpo de aço produzindo uma espécie de acompanhamento a seu ritmo interior. Da janela de meu camarote, vejo de vez em quando enormes gaivotas; acho bizarro pois o navio já está muito afastado da terra. Durante o almoço, o comandante me diz que são três albatrozes que acompanham o navio, de dia, para se alimentarem e à noite pousam sobre o mar. Penso: “três albatrozes, três elefantes, sem dúvida vão-nos trazer sorte…”

Agora vamos ter por alguns dias o deserto do mar. Coisas muito esperadas são as refeições de suculentos pratos – queijos holandêses e toda sorte de gulodices, sobre alvíssimas toalhas, apresentadas em cristais e porcelanas finas. Às sete e meia da manhã, bate o gongo anunciando a primeira refeição. O camarada Ivanovitch já está à mesa comendo como um faminto; a cada refeição, repete os pratos do longo menu! Todos se riem dêle e os garçãos o odeiam mas êle não percebe. Penso que fará êle quando sair do navio – nem em sanatório superalimentando dar-lhe-ão semelhante ração!

O céu se enche de nuvens, o mar até aqui tão azul toma uma cor cinza opaco e escuro, o mar, tudo anuncia grande tempestade. Entro na cabine e sinto fortes oscilações. A noite toda o temporal se desenvolve, percebo as vibrações do navio, desde sua raiz; o barulho horrível das ferralhas nos porões; meu camarote é só aclarado pelos raios, seguidos de terríveis trovões. Nada pára nêle – tudo é jogado ao chão de um lado a outro; cheia de terror presencio sózinha a êste espetáculo imprevisto. O dia aparece num duvidoso crepúsculo. A muito custo vou ao deck vêr o mar furioso. O Straat-Malakka se enterra entre duas enormes montanhas d’água. Parece uma folha ao vento nessa imensidade de mar louco e enfurecido. E minha vida como uma vela que pouco falta para apagar-se… Tudo vibra, tudo estala. Na mesa puseram uma cêrca e reduziram muito o cardápio. É-se obrigado a pegar nos pratos que fogem! Os boys lutam para nos trazer a comida. Agora chove e o vento uiva querendo arrancar tudo. Ao jantar digo ao comandante meu temor, êle ri e me diz “fique sossegada, isso não é nada; os ciclones que batem nas costas da China, isso sim, é que se pode temer”. Durmo vestida, com meus documentos, em caso extremo. A noite inteira os elefantes fazem ouvir suas lamentações o que ainda completa a tristeza dêste temporal, que durou quatro dias e quatro noites! O grande e gordo tchecoslovaco, que subiu em Durban vem conversar comigo. Ele fala um pouco de francês e me diz ter vindo da Austrália, onde morou vários anos, detestando principalmente as mulheres que só pensam em whisky, cavalos e automóveis. Vai para Buenos Aires contratado para mostrar aos operários como se lida com máquinas difíceis. Ele é feio e tem os dentes separados uns dos outros, o que lhe dá um sorriso cruel. Faz-me a corte e me escreve bilhetinhos, que acha em cima da mesa, no salão. Agora sim, que fujo dêle! Começo a arrumar minhas coisas, as malas, a tirar tudo das paredes, das gavetas.

BUENOS AIRES

Buenos Aires. Já mandei um telegrama a meus amigos, sr. e sra. Yokohama. O Straat-Malakka chega ao crepúsculo da tarde; vai ficar oito dias neste porto. Nada de vêr meus amigos! Será que receberam o telegrama! Mas no dia seguinte vieram. Choramos juntos… Riokai, eu não podia me conter e de contar o desastre da minha vida. Convidaram-me a ir à casa dêles. Já estava tudo bem mudado, as duas filhas Norma e Yolanda casadas. Dona Matilde me contando a perseguição que tinha havido à colonia japonêsa e a notícia do tal grupo “Shindoremmei” (18) no Brasil; que era bom eu não falar, chegando lá, que o Japão tinha perdido a guerra. Exploravam êsse tema assassinando famílias inteiras.

(18) SHINDO RENMEI (Liga do Caminho dos Súditos), organização extremista criada em 23 de setembro de 1945 em São Paulo com orientação ultra-nacionalista japonesa, que explorava a falta de informações sobre a guerra entre os imigrantes no Brasil. Logo após o fim da Segunda Guerra, a colonia japonesa estava dividida entre dois grupos: 20% da colonia era considerada “makegumi” (derrotistas – formada principalmente por intelectuais, que sabiam outros idiomas além do japonês e que por isso tiveram acesso a informações sobre a Guerra) e 80% era considerada “kachigumi” (vitoristas – que se recusavam a aceitar a derrota, liderada por imigrantes recentes educados no Japão militarista). Os membros da Shindo Renmei usavam da coerção para impor sua ideologia, assassinavam imigrantes considerados derrotistas, além de divulgar notícias falsas sobre uma fictícia vitória do Japão, causando confusão e conflitos no meio da colonia. Dois fatores acabaram desmantelando a organização: a ação da polícia e a criação de dois jornais em japonês (idioma que foi proibido pelo governo brasileiro durante a Guerra, medida esta que causou a grande desinformação entre os imigrantes), o Jornal Paulista e o São Paulo Shimbun.

Uma das primeiras coisas que fiz em Buenos Aires foi ir em romaria ao Museu Nacional de Belas Artes ver se estava ali o quadro de Riokai. Depois de muito andar por avenidas e ruas intermináveis, à tarde descobri o museu pois não havia táxi e eu não conhecia a cidade. Percorrendo várias salas, nada de vêr seu quadro, mas por último na galeria dos Estrangeiros lá estava êle brilhando no meio dos mestres de renome. Fiquei comovida, sabendo que arte não tem nacionalidade…

Fui também fazer uma visita ao dono da Galeria Muller; levei um fascículo do livro de Arte, que tinha feito no Japão. A princípio não me reconheceu. Ainda me ofereceu fazer mais uma exposição dos quadros de Riokai. A sra. Matilde foi uma dedicada amiga, me ajudando a levar telas de grandes dimensões, do vapor para a casa dela. Ela foi vendendo e mandando o dinheiro para o Japão, para meu sogro. O capitão foi generoso em consentir, a meu pedido, de convidar meus amigos para almoçar no vapor. Durante a guerra, foi êle judiado pelos japonêses e detestava-os. Tivemos uma boa tarde relembrando os dias que passamos em 1941.

BRASIL

Brasil! Toca em Montevidéu mas não desço; já estou com tudo arrumado, pacotes, maletas de mão, mala de roupa; êstes últimos dias emprego para vêr de perto o centro do navio alto de três andares, suas máquinas; admiro essa arquitetura complicada e maravilhosa, que se chama mecânica e de que nada compreendo. Vencendo os mares e tempestades, não é mais de carvão que êle se alimenta mas de óleo – tudo é limpo, asseado e cada máquina tem seu emprêgo como se fossem braços que trabalhassem ao mesmo tempo. Tem também uma possante chaminé, onde está sua sonora voz, que tanto me impressiona, à  saída de cada porto!

O Straat-Malakka recebeu ordem de passar por São Francisco do Sul para carregamento de madeira. Pela manhã bem cedo vejo do meu camarote altas montanhas arborizadas, uma igrejinha toda branca e coqueiros – é o Brasil! Estamos entrando. Não há cais, são umas tábuas desjuntas e mal dispostas, que têm êsse nome. Vamos ficar uns dias presos aí devido à maré baixa. O prático não quer se aventurar a fazer sair o vapor; mais adiante há um estreito com rochedos embaixo. O comandante me chama para traduzir; êle está indignado, como é que o prático não decide? Eu sou levada lá em cima onde funciona o comando e vivo um novo suplício entre o prático e o comandante.

São Francisco do Sul é uma ínfima e atrasada cidade do interior. Chegamos num dia de procissão, o que dava uma nota inédita à s suas ruas. Vamos sair! Talvez iremos à noite… Passa-se o tal estreito, a grande velocidade, estamos salvos! Por esta vez.

Santos faz um calor de torrar. Desço com o camarada Ivanovitch, que está pesaroso de deixar o vapor; êle também está com um futuro incerto; já se foi o tempo em que só vivia para comer, feliz como um animal bem nutrido. Assim mesmo quer conhecer as comidas brasileiras. Entramos num café, peço guaraná, empadas, pastéis – não gostou. Andamos pelo centro. Compro um cofrezinho e um cinzeiro ornado de asa de borboleta para dar como lembrança ao comandante.

Estamos reunidos pela última vez ao jantar. O capitão achou Santos horrível, sujo e relaxado. Era a primeira vez que vinha ao Brasil. No dia seguinte já estava o navio entrando na barra, de madrugada. Eu, como sempre nessas ocasiões, nervosa e agitada. Subi à s “torrinhas”, onde estava o capitão, para dizer-lhe adeus e agradecer-lhe toda a sua gentileza, e sua maestria em nos guiar através de dois oceanos. “Adeus” – e minha mão sumiu na grande e grossa mão do comandante Wlik.

CHEGADA AO RIO

Havia, como em todos os portos, uma infinidade de regras a cumprir, antes de poder descer, a polícia fazendo mil perguntas, meus numerosos caixotes que deviam sair dos porões, a profusão de pacotes e maletas de mão, os repórteres dos jornais do Rio procurando-me para entrevistar-me, fotografar-me. Era o primeiro vapor a vir do Japão depois de 1941. Faziam-me perguntas incríveis como por exemplo: “que pensa o Imperador Hirohito por ter perdido a guerra? o povo japonês gosta dos americanos? As mulheres agora são felizes por ter o direito ao voto? Carregam sempre os filhos nas costas? Sofreram muito durante a guerra?”

A cada pergunta eu dava a mesma resposta “não sei”. Enfim Maria Paula apareceu com uma amiga. Como fiquei feliz em vê-la… Como se fosse uma querida irmã. Descemos. Já estávamos no cais formigando de gente; impossível tirar a minha grande bagagem da Alfândega naquele dia. Íamos andando. O grande navio estava encostado no cais; agora estava eu em terra firme, não iria mais voltar. O pavilhão holandês flutuava no alto mastro, com a bandeira brasileira. “Adeus”, dizia eu silenciosamente comovida. “Adeus, caro Straat-Malakka, que me trouxe do Japão ao Brasil em três meses e meio!”

Nova vida ia começar para mim, cheia de dúvidas e incertezas. Maria Paula me levou a seu novo apartamento, grande e mobiliado com luxo, de muito gosto. Apresentou-me a seu marido, o professor Victor de Carvalho, que achei simpático e acolhedor. Alto, de rosto oval e olhos azuis, cheios de bondade e ao mesmo tempo enérgico; eu, como sempre me encolhendo na minha timidez que estragou boa parte de minha vida. Maria Paula, sempre linda e elegante, dava-me os melhores conselhos – “vai vêr”, dizia ela, “você com o nome de seu pai vai se arrumar bem aqui”. E levou-me para meu quarto todo claro, todo chique; tudo isso me acanhava. O almoço foi servido com belos cristais e linda toalha, um menu e tanto – aqui era a comida brasileira, mas da gostosa!

Fui conhecendo as amigas de Maria Paula – a Gilda, que fazia teatro, Norma, Adalgisa, os alunos de declamação. Maria Paula escrevia no jornal “A Noite” e também compunha lindas peças infantis, tendo tido algumas premiadas. Nossas conversas eram longas; eu, chorando contava-lhe os horrores que passei com a morte de Riokai, a devastação que essa tristeza me fêz na estrutura de meu sêr. Foi para mim pior que a guerra. Antes êle tivesse ido e morresse lá longe de mim, de um tiro perdido! Maria Paula não gostava de se atradar nessas conversas. “Vamos tratar de vender suas pérolas” – dizia ela e arranjou amigas; e o dinheiro foi novamente entrando.

As malas e os grandes caixotes foram para o “Gato Prêto”, depósito de móveis; outra parte foi para o sótão do edifício.

Tanto acato, tanto carinho de Maria Paula me enternecia mas eu não queria ficar indefinidamente e pensava em vir a São Paulo; mas antes queria levar a linda boneca ao prefeito sr. Mendes Moraes. Lá fomos no dia e hora marcados, eu de vestido de gala, o presidente da Associação dos Artistas Brasileiros, o sr. Manoel Santiago e o sr. Kaminagai, pintor de fama, que morava em Sta. Tereza. a boneca ia na sua caixa de vidro; eu levava as cartas do prefeito de Kobe. Chegando lá encontramos os fotógrafos de alguns jornais e repórteres que esperavam a entrevista. Ficamos ali numa sala quase duas horas, quando apareceu o oficial de gabinete dizendo que sua excelência não podia receber. Entreguei ao oficial de gabinete a boneca e as cartas e assim cumpri a missão que recebi do prefeito Kodera no Japão.

Todos os dias era a luta para vender as pérolas; eu tinha comprado o pacote e agora precisava vender uma a uma como no conta-gotas. Os belíssimos colares que trouxe foram vendidos baratíssimos e mesmo asim custava a achar comprador. Como ia abrir-se o salão oficial em agosto, mandei duas telas minhas e duas de Riokai, “Boutique de fleurs” e “Place Pigalle”, e minha, crisântemos (tela grande) e dálias vermelhas. Foram todas aceitas. Fui diversas vêzes visitar meu amigo e colega sr. Osvaldo teixeira, Diretor do Museu de Belas Artes, sempre gentil e bom, um grande pintor que sempre admirei, seu desenho e suas composições. Maria Paula tinha dado uma linda festa para meu aniversário (não sei como descobriu essa data) pois sempre escondi achando que me trouxe azar. Grande mesa de doces, lindos presentes; até Rique, seu cachorrinho, me regalou. Suas amigas vieram; meu primo Acquarone foi convidado. Fui presentada com uma linda malha vermelha e uma bela blusa de organdi, que o sr. Victor me deu. Quantas carinhosas atenções… ficava triste por nunca poder retribuir tantas marcas de afeto.

SÃO PAULO

Meus planos e pensamentos iam para São Paulo – fazer uma exposição de meus quadros, de Riokai e de meu pai; eu ainda tinha umas telas, vender as pérolas e quem sabe, abrir um curso de pintura. Eu estava com Maria Paula já ia pelos três meses; precisava me resolver a viver minha vida. Comprei um bilhete na “Real” e vim de avião, pela primeira vez na minha vida. São Paulo me reservava tremenda luta. Os primeiros três dias passei na casa de uns conhecidos japonêses mas eram tantos os percevejos à noite, que quis sair dali o mais depressa possível. Achei a muito custo um quarto numa espécie de porão, de uma pensão na rua Augusta; na frente que dava para a rua, era uma garagem dividida por um tabique, divisão de madeira mal posta, que não chegava até o forro. Nessa parte de trás é que me instalei; era grande e devido a poder por algumas malas, fiquei sofrendo nesse recinto escuro, sem ar e sem luz durante nove meses! Tinha uma janela engradada como prisão e uma porta que dava para uma área onde havia um tanque. A porta que servia para entrar e sair da rua dava para um estreito corredor escuro e frio onde as aranhas trabalhavam em paz. A dona da pensão me deixou por mais alguns caixotes e malas; o restante tinha ficado no Rio, no Gato Prêto. Comecei a vêr quanto era difícil arranjar sala para fazer exposição. Como eu tinha a boneca que trouxe para o prefeito de São Paulo, procurei o vereador dr. Yukishigue Tamura (19), que devido à boneca, se interessou em arranjar o saguão do Teatro Municipal; foi devido a êle que pude ter para a quinzena do mês de dezembro êste local muito cobiçado, onde tinham-se seguido exposições de arte comercial dos pintores tchecoslovacos. Minha exposição foi a última; o teatro foi depois fechado por muito tempo devido aos reparos.

(19) TAMURA, YUKISHIGUE nasceu em São Paulo em 1914. Formou-se em 1939 na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (hoje da USP) e seguiu carreira política. Foi eleito vereador de São Paulo em 1947, deputado estadual em 1951 e deputado federal em 1955. Idealizou a implantação da Usiminas e teve seu mandato cassado em 13/12/1968, quando o Congresso Nacional foi fechado pelo governo militar. Na década de 70 voltou a ser eleito vereador de São Paulo. Yukishigue Tamura foi o primeiro descendente de japoneses eleito membro do Poder Legislativo brasileiro em suas três instâncias, e foi o primeiro “nikkei” (descendente de japoneses nascido fora do Japão) no mundo a chegar ao Congresso Nacional de um país. Atualmente aposentado, e desfrutando de saúde apesar da avançada idade, reside em São Paulo com a esposa e dedica-se à  família.

Os quadros estavam nos caixotes e muitos não tinham molduras; todos os desenhos e quadros de meu pai precisei emoldurar mas eu tinha confiança e pensava – “se não vender os meus e de Riokai, os de meu pai serão adquiridos”. Gastei um dinheirão de transportes, convites e catálogos de luxo, molduras, etc., fora o colossal trabalho que tive eu sózinha de tirar as telas das caixas, pregar, ver o melhor lugar. depois de uns dias, foi que conheci um rapaz japonês Jorge Mori (20) que muito me ajudou prática e moralmente. Um grande futuro na arte, êsse amigo, cheio de talento e de entusiasmo pela pintura.

O dia do “vernissage” chegou, a boneca foi exposta na entrada da escadaria; antes tínhamos ido levar o convite pessoalmente ao prefeito, à sua casa, com o dr. Yukishigue Tamura. Já havia muita gente, jornalistas, artistas, intelectuais, mas nada do prefeito Asdrubal Euritisses da Cunha chegar. Afinal veio um representante dêsse ilustre funcionário. e a cerimonia começou, falou brilhantemente o dr. Yukishigue Tamura e outros oradores e a exposição foi aberta ao público. Expus meus quadros de Paris, do Japão e os de Riokai, nas ruas de Paris, de meu pai, quadros de gênero e desenhos. Os dias iam passando e nada de vender. Jorge Mori vinha todos os dias fazer-me companhia; nosso tema, invariavelmente era o mesmo – “que gente! Ninguém se interessa por arte. O que apreciam é a pintura tipo cromo, os comerciantes que vieram com êsses quadros fizeram fortunas!” dizia êle.

Por intermédio de Jorge Mori conheci um cineast de “Atualidades”, que veio filmar os quadros da exposição. Eu saí conversando perto de um quadro com Jorge Mori. Passou êsse filme em todos os cinemas de São Paulo. Tive uma boa crítica pelos jornais destacando-se a entrevista que a Gazeta publicou, “No País das Cerejeiras”, onde estou ao lado do dr. Yukishigue Tamura. Os jornais japonêses cotidianos falavam sobre êsse certamem de arte. Também recebi a visita do secretário do São Paulo Shimbum. O diretor dêsse jornal, sr. Mizumoto, queria saber como andava o lado financeiro da exposição. “Muito mal” – respondi. Esse jornal se encarregou de fazer uma rifa “ação entre amigos” de dois quadros meus e um de Riokai. Foi o que me valeu, que me cobriu as despesas da exposição mas ficou longe de dar o que se esperava. Os bilhetes foram comprados pela colonia japonesa de São Paulo e interior. Assim terminou essa mostra de arte, onde eu tinha posto minhas esperanças, pelo menos de achar amadores para os quadros de meu pai… Fiquei definitivamente sabendo que era impossível para mim viver de pintura.

(20) MORI, JORGE nasceu em 1933 e iniciou seus estudos de pintura em São Paulo com Yoshiya Takaoka em 1944. Aos 14 anos, fez sua primeira exposição individual. Participou do Grupo artístico Guanabara, de 1950 a 1952. Em 1952, foi para Paris estudar desenho e pintura nas academias francesas, onde ficou dois anos. Voltou ao Brasil e expos no Museu de Arte Moderna da São Paulo. Em 1960 retornou a Paris, onde estudou a técnica clássica da glacis. Desde então, vem expondo em várias galerias e museus no Brasil e na França. Destaca-se sua participação na Bienal de Trouville em 1976, onde ganhou o Primeiro Prêmio.

Fui convidada para acompanhar uma soprano japonêsa e tocar umas músicas no Teatro Municipal. Foi um grande festival que a colonia japonêsa ofereceu; conheci o vasto palco dêsse teatro, tive a emoção de tocar no grande piano de cauda as peças de Rameau e Couperin, fui aplaudida. Toquei ainda várias vêzes num teatro do largo São Francisco, a convite dêsse jornal amigo. E eu sempre pensando em solocar as pérolas! Colocava uma aqui, outra ali, sempre por um preço irrisório, estando ainda as pessoas certas, que no Japão havia pérolas como areia!

Precisava tomar uma decisão. Que iria eu fazer sem emprêgo, sem futuro, sempre gastando para viver, mesmo levando uma vida modesta. Ninguém com quem em pudesse contar. Fui diversas vêzes ao Rio visitar Maria Paula mas lá também era muito difícil de se arranjar alguma coisa, visto que eu não era mais moça e tinha, para entravar minha atividade, pouca saúde. Eu tinha uma amiga que estava no interior e ela me escreveu: “Por que não vem a Mogi-Mirim? É perto de São Paulo e aqui você poderia abrir um curso de pintura e ter alunas com mais facilidade”. Fui um dia a essa cidadezinha – levava-se quatro horas para lá chegar por via terrestre: não gostei, achei-a pobre e feia, mas era ainda melhor do que ficar em São Paulo. Não faltava gente para me aconselhar. Sem ajudar. Uns tempos depois comprava eu uma casinha na avenida Jorge Tibiriçá, 406, que mandei inteiramente reformar e me instalei nesse lugarejo, onde fiquei mais de três anos. Todo o interior é parecido: o largo da matriz, as famílias importantes habitam o centro, em confortáveis bangalos, possuem fazendas por perto e carro de luxo, de último modêlo à porta e frequentam o clube onde os demais são excluídos. Mogi-Mirim, com tanto passado, deveria ser hoje uma cidade mais civilizada e culta.

Mas assim mesmo eu estava contente de sair daquêle porão escuro e úmido de São Paulo, onde fiquei dez meses. Respirei ao ter sol e luz, espaço para pôr as malas e caixotes. Fui ao Rio buscar as bagagens que estavam no Gato Prêto. Uma dificuldade: não havia transporte para Mogi-Mirim e tudo foi complicado e oneroso, mas que alegria! Eu tinha uma casa limpa, um jardim com um velho pessegueiro no centro, que se cobria de flores no mês de agosto e um gato, um bom companheiro! Agora, depois de tudo instalado, precisava falar com uns e outros, fazer-me conhecer nesse meio. Já havia vários “curiosos” que eram conhecidos vindos de Campinas e que ensinavam a copiar cromos. logo se tornaram meus inimigos. Os alunos pagavam por um Mês de aula cinquenta cruzeiros. E ainda achavam muito caro!…

Abri um curso em Itapira, numa garagem. Nesta cidade apareceram mais alunas. O ensino era misto e havia professores de grupo, do ginásio, mas eu implantei o estudo do natural. O que me foi duro. Ensinava piano e andava duas vêzes por semana pelas acidentadas ladeiras de Itapira!

Mas que diferença, pensava eu, com as alunas do Japão! Aqui elas queriam tocar coisas difíceis, sem ter o menor preparo; as mães tratavam o professor, sem a menor consideração e queriam prejudicá-lo na mensalidade, sempre atrasada! Na pintura, só queriam cópias de cromos, retocadas pelo professor, para encher as paredes de suas casas ou para dar de presente ou vender com lucro, pois julgavam caro o material.

Outro trabalho titânico que empreendi: quando fui para o Japão em 1940, deixei à guarda, no depósito da Escola de Belas Artes em São Paulo, um grande quadro histórico da autoria de meu pai, Aclamação de Amador Bueno. Fui me informar e soube que o govêrno tinha mandado retirar êsse trabalho para ornar uma das salas do Ministro no Palácio do Govêrno, hoje demolido. Isso êles fizeram sem me pedir autorização. Eu estava no Japão, no fóco da guerra; talvez tivessem pensado que eu já não existisse.

Eu não sabia em que caminhos emaranhados estava me metendo para vender o “Aclamação de Amador Bueno”, de meu pai ao govêrno. Prometiam comprá-los, mas passavam-se dias e meses, e nada. Quando eu não tinha aula em Mogi e em Itapira, lá ia eu para São Paulo procurar uns e outros. Na Secretaria da Educação, passei horas, fazendo companhia à s professoras procurando remoção. Passava dois e três dias em São Paulo, gastando dinheiro e levando vida pouco interessante. Veio-me a luminosa idéia de procurar um colega que eu tinha perdido de vista e que eu conhecia de Paris, êle estava como diretor da Pinacoteca. Fui visitá-lo, recebeu-me bem, era aquêle mesmo Mugnaini, calmo e ponderado, mas cheio de talento e de bondade. Aconselhou-me a procurar o sr. Alduino Estrada, que também eu conhecia, quando frequentava a casa de meu pai. Agora estava como diretor da Secretaria da Educação. Foi por intermédio e apoio dêstes dois amigos, que consegui, depois de um ano e meio de lutas, vender êsse quadro em princípios de 1952, por cento e vinte e nove contos e quinhentos, da verba da Pinacoteca. O túmulo de meu pai foi construido com êsse dinheiro e, felizmente, o seu quadro estava em lugar apropriado e ao abrigo do estrago do tempo.

Quando voltei de São Paulo estava tão exausta, que vim quase gemendo na perua que me levou a Mogi. Cheguei em casa com um mal estar indescritível e à noite uma forte crise cardíaca, igual à  que tinha tido no Japão. Imaginem o meu susto. sózinha, pensei ser o fim. O médico foi chamado por populares que passavam na rua. Em vez de me animar, não; “é”, disse êle, “isso poderá repetir-se”. Que bela perspectiva, não acham? Repouso completo durante um mês, ninguém para me tratar; a avizinha vinha à s vêzes me vêr rà pidamente, porque tinha mêdo de pegar. Só meu gato Kotori ficava o dia todo comigo, como um bom amigo. Essa crise me deixou bem desanimada.

Eu conhecia de muitos anos atrás o professor B. Sampaio e sua numerosa família; moravam em Campinas. Às vêzes eu vinha visitá-los e me diziam: “venha fazer uma exposição aqui. Os campineiros gostam de arte”. Foram gentis comigo, apresentando-me ao sr. Mendes, que me cedeu o saguão do Teatro Municipal e em novembro de 1951 abri uma exposição, com alguns quadros de Riokai e de meu pai. Tive um trabalho titânico; eu sózinha para a embalagem e transporte de Mogi para Campinas. Nenhum caminhão queria se encarregar. Iam todos para São Paulo. Ninguém para me ajudar. no dia da inauguração fiz uma pequena conferência sobre minha estada no Japão. Todas as tardes e noites, muitos visitantes, mas nada de compradores. Foi justo o que tirei para as despesas. Três dias antes de terminar, tive a contrariedade de ver minhas telas todas arrancadas das paredes e uma a mais importante, grande estudo de crisântemos, furada. Meus quadros ficaram espalhados pelo chão. Foi um trabalho para reencaixotá-los à s pressas!

Agora já não tinha mais a preocupação do quadro de meu pai para vender. Meu curso em Mogi, (uns ricos libaneses, Chaibs, tinham me cedido numa sala da fábrica, agora vazia, na mesma avenida em que eu morava) passou a ser minha nova preocupação. Ali iam algumas alunas para estudar do “natural”, primeiro, desenho, e, depois, pintura. Consegui incutir-lhes um pouco de regras e de arte, pois pintar é também uma disciplina.

Em Itapira também tinham progredido. Fiz uma exposição dos trabalhos das alunas no Clube XV de novembro, a primeira mostra de arte nessa cidade. Fiz também em Mogi-Mirim na Biblioteca Pedro Janusi, inaugurando com a presença do professor, diretor da Pinacoteca Tulio Mugnaini, e do professor Alduino Estrada, diretor do Ministério da Educação.

A última exposição que fiz em Mogi foi em 1952. Com as alunas de Itapira, juntas nesse mesmo local.

Em Mogi-Mirim tive o prazer de não ter vendido nenhuma tela minha.

Vendi, a muito custo, dois quadros em Itapira, sendo que um, rifado, e, outro, por três contos, para um fazendeiro milionário.

Ambiente ingrato. Nada havia de atraente nos arredores de Mogi: só mato, barba de bode, casa de cupim, terra vermelha e imensos cafezais. Como chove pouco no interior, as folhas também ficam empoeiradas e de um verde sujo, sem nenhuma flor. Não sei como consegui fazer grandes telas com flores, em Mogi-Mirim!

Às vêzes, eu ia visitar uma senhora muito idosa, que morava sózinha num imenso casarão perto do centro. Batia por longo tempo no seu portão e ela aparecia à janela com sua peruca mal ajustada. Dava-me uma enorme chave, que pesava bem um quilo, para que eu abrisse a porta da casa. Dela, toda contente e curvada pelos anos, só restava dois olhos azuis, vivos e inteligentes. Tinha sido uma poetisa renomada, em idos tempos.

Dona Ebrantina Cardona, com vários livros publicados, mulher de vanguarda na sua mocidade, havia estudado medicina e depois se dedicado às letras. Coitada! ainda teve um gesto heróico: vendeu seu piano para mandar publicar seu último livro de poesia.

Estava ali, abandonada, a meu vêr, a única pessoa de valor na cidade.

Folheando um livrinho, publicado há muitos anos, achei que os fatos mais importantes dessa comarca, foram: a inauguração da Estrada de Ferro Mogiana por Pedro II (ficando o Imperador alguns dias na cidade), e também, a estadia, por algum tempo, do grande pintor Almeida Júnior (20), quando, ainda, muito moço.

(21) ALMEIDA JÚNIOR, JOSÉ FERRAZ DE (Itu, 1850 – Piracicaba, 1899) foi um grande pintor acadêmico brasileiro do séc. XIX. Cursou a Academia Imperial de Belas-Artes no Rio de 1869 a 1874. D. Pedro II, em visita à Província de São Paulo, impressionou-se com o retrato de Antonio Queirós Teles, pintado por Almeida Júnior, e estimulou-o, concedendo-lhe bolsa de estudos para ir à Europa. De 1876 a 1883, Almeida Júnior frequentou a École des Beaux-Arts de Paris e foi aluno de Alexandre Cabanel. Pintou temas bíblicos, assuntos brasileiros, retratos e quadros de gênero.

Todos os dias meu desejo de sair dessa terra ia-se tornando mania. Vinha frequentemente a Campinas para me abastecer de verduras, frutas, manteiga – nem essas coisas elementares se encontravam em Mogi!

Por acaso passavam à s vêzes boas fitas, num dos dois cinemas. Certa vez, um grande circo foi parar nesse buraco. Fizeram passar pelo centro todos os componentes dêsse teatro nomade. Como eu me achava no largo, pude ver desfilar compungida, nos carros de praça, os anões. Havia muitos homens e mulheres, com umas expressões tristes, mostradas como curiosidades. Era uma fila interminável: vinham alguns camelos velhos e pelados, cavalos minúsculos e feras enjauladas, mas magras e deprimidas pelo cativeiro. Não gostei; francamente, não gostei.

Os carros de bois que paravam em frente, numa venda à minha casa, eram mais interessantes: à s vêzes, oito a dez bois, puxando com dificuldade, todos amarrados a uma pesada canga no pescoço. as rodas de madeira maciça, rinchando, eram ouvidas de longe.

Adeus, Itapira; não me deixas saudades, com tuas ruas ermas e empinadas, verdadeiro inferno dos burros de carroça, levando carga bem superior às suas forças.

E sua vida calma, com procissões, casamentos e ricos da terra viajando para a Europa ou Argentina, etc….

Comprei uma casinha em Campinas, com um longo terreno de fundos. Aluguei a casa e mandei fazer no terreno restante um atelier, que foi terminado em novembro de 1953. Consta essa minha nova morada, de duas grandes peças, e mais cozinha e banheiro. Isso me deu muito trabalho e lá se foram todas minhas economias!…

Estou mais confiante, pois tenho a vida material mais segura e não preciso correr atrás de alunos. Estou ainda com ilusões, vou trabalhar para enviar ao Salão Paulista, uma cesta com flores diversas; um pote de metal com rosas brancas e mais outro estudo.

Mas tive a decepção de ver tudo recusado, depois de ter sido aceita em Paris, no Salon des Artistes Français, durante cinco anos consecutivos, no Salon des Tuilleries e nos melhores Salons do Japão.

Em 1959, no Salão Oficial dos artistas Brasileiros de São Paulo, existiam três elementos no júri, sendo que dois de Campinas. Um tal Tortorelli, mais um grupo de italianos, se apoderaram do Salão Paulista. E não mais digo…

Mas o porvir ainda ia me reservar desagradáveis surprêsas: logo vi que eram panelinhas que dominavam os “meios artísticos”, tanto de São Paulo como de Campinas. Tudo uma pinóia!

Também constatei que ensinar piano seria uma impossibilidade dada a existência dos muitos conservatórios.

Em Campinas, há algumas academias de arte, subvencionadas pelo govêrno. A meta para a maioria dos alunos é a espetacular festa de formatura e o diploma. “Formado pelo Conservatório de Campinas”. Na Escola de Belas Artes dá-se a mesma coisa.

Kaminagai, pintor de renome, tendo morado longos anos em Paris, estando no Rio, veio até esta cidade fazer uma bela exposição no saguão do Municipal. Eu já o conhecia de 1940, quando vim com Riokai do Japão. Fomos a cada jornal levar o convite para a inauguração. Também convites para pessoas ricas com fama de apreciar pintura; entregamos cartas de apresentação a americanos bem postos em Campinas. Uma bela mostra de pinturas artísticas, bem apresentadas em ricas molduras.

Ninguém se mexeu! Os jornais deram apenas três linhas dizendo que a exposição estava aberta ao público. Como estava acabando o prazo para a mostra, resolvi escrever um artigo. Mas cortaram muita coisa e saiu depois de um custo bárbaro no dia do encerramento. Disse-me o pintor Kaminagai ter sido essa minha cronica a melhor cousa que levou de Campinas em 1955.

Tenho crises de desânimo. Porém consigo vencê-las. Pinto, desenho, trabalho completamente isolada, repasso meu repertório, decóro os clavecinistas franceses (Daquin, Comperin, Rameau) gosto de Albeniz. Adoro os bons livros e leio muito, o que me faz suportar, meu retiro. Esforço-me para expressar o que sinto.

não tenho amigos. As mulheres que conheço são muito femininas. Como mães de família, ocupam-se da casa, do marido e dos filhos. É da moda, dos penteados, do trato das unhas e da beleza. Nada de cultura do espírito. O sistema patriarcal perdura e não está prestes a se acabar.

Mando para o Salão de Campinas algumas telas, outra vez recusadas. Até parece anedota, custo a crer! Não há dúvida, sofro perseguição dêsses cabotinos, porque sou mulher. e também porque sou filha de um grande pintor. E apesar de não ter vivido à  sombra de um grande nome…

SÃO PAULO, 1950

Uns tempos depois que cheguei a São Paulo, tive finalmente notícias de minha irmã Margarida, tendo ela sabido que eu estava em São Paulo, pela minha irmã Judith. Estava agora em Gotemborg (Suécia). O Luiz, seu marido, dirigia o Consulado do Brasil, nessa cidade.

Fiquei contente de ler sua carta. Isabel, minha sobrinha, já estava uma linda moça, pelas fotos que recebi. Às vêzes me escreviam, contando-me como era a vida de lá e de seu povo, um dos países mais evoluídos do mundo. Gostei de conhecer alguma coisa da Suécia, através dessas cartas. Soube que Isabel estava noiva de um paulista e que iria se radicar em São Paulo.

EXPOSIÇàO DE RIOKAI – SÃO PAULO, 1955

Fazia tempos que eu andava com o projeto de fazer em São Paulo uma exposição das telas de Riokai. Para êsse fim fui diversas vêzes a São Paulo arranjar local e organizar a exposição. Era uma emprêsa árdua, que me deu o que fazer. Um colega, sr. Takaoka foi comigo falar ao dono do cine Niterói (21), que me cedeu o salão do hotel por alguns dias. O salão era grande. No meio, foram instaladas divisões recobertas de lona para pendurar as telas.

(22) CINE NITERÓI foi o nome da primeira sala de exibição fixa da comunidade japonesa em São Paulo. Yoshikazu Tanaka e seu irmão abriram o Cine Niterói em 1953, exibindo o filme “Genji Monogatari” de 1951, prêmio de Melhor Fotografia no Festival de Cannes. As instalações do Niterói eram grandes, na rua Galvão Bueno, onde hoje se localiza o Viaduto Osaka: cinema no subsolo, salão de eventos e restaurante no térreo, e hotel num andar superior. Rapidamente o Cine Niterói tornou-se importante ponto de encontro de imigrantes e seus descendentes, e gerou a área de concentração comercial típicamente oriental que é hoje o turístico bairro da Liberdade. Em 1961, o Niterói tornou-se distribuidor exclusivo das produções da Toei Dõga, grande companhia cinematográfica japonesa. Em função da construção da Avenida Radial Leste, o Niterói teve de se mudar para um novo endereço, na esquina da Avenida Liberdade com Rua Barão de Iguape, onde funcionou até seu fechamento em 1988.

O aluguel e a compra de molduras, os catálogos e convites, o transporte e as embalagens fizeram-me gastar um dinheirão. Foi um trabalho extenuante, mas no dia 15 de maio de 1955, tive a alegria de inaugurar a mostra de telas de Paris e do Japão, homenagem ao meu saudoso Riokai. Minha sobrinha Isabel ajudou-me adquirindo a bela tela Vins et liqueurs. As outras, foram todos japonêses que compraram, interessando-se pela exposição. de brasileiro, só apareceu um fiscal para me aplicar multa, porque não tinha feito declaração na Prefeitura.

No primeiro dia, ofereci um coquetel aos amigos e amadores artistas, intelectuais, jornalistas brasileiros e japonêses.

Não ganhei nada com as vendas, tudo sendo absorvido nas despesas, porém fiquei contente por haver mostrado mais uma vez a arte de Riokai.

Com o tempo fui conhecendo melhor Campinas. Apesar de infensa à  arte, é uma cidade de muita tradição e muito progressista, muito ligada à  São Paulo.

EMBARQUE NO AUGUSTUS, 1952

Um velho amigo de meu pai, sr. Altusino Estardo, ofereceu-se a comprar os trabalhos restantes de meu pai, com a condição de acompanhar a Paris uma sobrinha sua. Como eu estava com umas complicações para receber uma herança duma tia, falecida em Bordeaux, aceitei a oferta. Em junho de 1952, fechei minha casa, deixando o gato aos cuidados da vizinha.

PARIS

Foi para mim uma grata surprêsa poder rever Paris. A 26 de julho de 1952, estava eu entrando no grande transatlântico italiano “Augustus”, superlotado. Pareciam todos novos-ricos, aprendendo ali as boas maneiras.

O navio só tocou em Dakar. Chegamos ao porto de desembarque, ao anoitecer, em Villefranche. O barco ficou longe; depois da polícia, começamos a descer numa lancha que nos levou em duas horas ao cais.

Eu estava feliz de me ver livre: nem sombra da sobrinha do sr. Altusino Estardo. Conforme ficara combinado, devia encontrar-nos no cais.

Fui para Nice passar uns tempos. Depois de percorrer algumas ruas dessa cidade que achei linda, clara, um mar azul turqueza, as casas brancas e outras coloridas, ensolaradas, voltei. Procurei a srta. Ossa, mas nada.

Tomei naquela mesma noite o expresso para Paris, lá chegando na manhã de outro dia na Gare de Lyon.

Assim que cheguei, fui visitar minha irmã Judith Mathurin, que morava ainda no mesmo edifício. Não nos víamos há vinte anos. Choramos de emoção. Tínhamos muito o que contar, apesar de estar ela muito fraca, devido a uma operação melindrosa. Contou-me os sustos e os horrores da guerra; e eu também acrescentando minha calamidade individual, a morte de meu Riokai. “Você não sabia?”, disse-me ela. “Isabel se casou, há alguns dias, na Embaixada do Brasil em Londres (em junho), com um belo e inteligente rapaz de origem nórdica, nascido em São Paulo”.

Margarida tinha prometido ir a Paris para nos encontrarmos, mas desistiu e eu voltei de lá sem vê-la. Logo ia conhecer minha sobrinha, nesse ano de 1952. Achei-a formosa. Depois o Luiz Einar, em 1953, uns anos depois, Cristian.

Margarida voltou em 1954. Fui buscá-la no Rio, esperando-a no cais, depois de vinte e um anos sem nos vêr, estávamos quase irreconhecíveis: tínhamos envelhecido bastante, mas que felicidade poder revê-la!

Agora, já não estava só: tinha suas cartas, que até hoje continuam a vir, dando-me alegria na aridez de minha solidão.

Revi o apartamento de Judith em Paris, onde morei, no primeiro andar dos fundos, durante treze anos. Lá estavam bem sujas as minhas janelas, que resistiram a duas grandes guerras. Nesse meu apartamento, passaram-se importantes trechos de minha vida. Lembro-me daquela tarde em que saí com meu marido Riokai, para não mais voltar. E agora, a mesma mme. Morisot, conciérge, arranjou-me um quarto pegado ao dela.

Fiquei, porque estava perto de minha irmã, num quarto pouco confortável.

Nada de notícias da srta. Ossa. Ela estava em Roma. Eu já estava muito preocupada, pois a mãe e o tio haviam-me feito muitas recomendações a seu respeito. Mandei um telegrama aos parentes e comecei a revêr Paris, que achei bem diferente: sujo e relaxado. Não havia aquela fartura de antes, como nos grandes magazines no Louvre, no Printemps, e em outros. Nos museus, como o Louvre, o chão era um espelho e tudo meticulosamente limpo. Agora não. Dominavam, como sempre, os rebanhos de turistas as suas salas, seguindo os seus cicerones, como carneiros. Mas, felizmente, o Louvre continuava sendo o Louvre de sempre…

Finalmente, depois de alguns dias, fui descobrir o paradeiro da sobrinha do sr. Altusino Estardo.

Contou-me um álibi complicado. Não houve meio de ela se interessar pelas belezas históricas de Paris. Quase à hora de fecharem o Louvre, chegamos apressadas. ela, de mau humor. Fomos diretas à gioconda de Da Vinci. Foi a única coisa que consegui mostrar-lhe. As boates e outros lugares alegres, eram de sua preferência.

Dalí devíamos nos encontrar em Veneza, para ir a Gênova tomar o vapor Province rumo ao Brasil. Nos dias que se seguiram tratei de minha herança – o dinheiro estava no Credi Lyonnais. Por lei, dinheiro e valores não podiam sair da França. fui lesada nessa herança, e o pouco que tinha a receber foi-me dado em pequenas prestações. Ela só me causou transtornos e despesas, com documentos caríssimos que precisavam ser legalizados ou passados pelo Consulado Francês, em São Paulo.

A vida noturna em Paris, que tanto atraía os estrangeiros não era mais a mesma. A guerra pos têrmo a muita coisa.

Eu, ensimesmada, sumida em recordações. Lembrei-me de uma poesia de Musset: “Rien n’est plus triste que les souvenirs des jours heureux”. (23)

(23) TRADUÇÃO – “Nada é mais triste que as lembranças dos dias felizes”.

Em Paris, passei o melhor de meus dias, com a minha arte. Em Paris me esforcei para progredir. Em Paris vivi meu grande e luminoso amor, que me levou ao Oriente.

Fui uma tarde fazer croquis no Grand Chaumiére. A porteira, mme. Rose, reconheceu-me – tínhamos envelhecido vinte anos. Lembrou-se de Riokai. O modêlo era bonito êsse dia e fiz diversos croquis. Entrei na loja de tintas Castelucho; estava do mesmo jeito. Sempre a filha da casa no balcão, mancando com seu aparelho na perna e seu ar duro ao atender os clientes. Comprei uma caixa de tintas e algum material de pintura. Depois fui andando pelo boulevard Montparnasse, passei na Rotonde, que agora não era frequentada por boêmios e por artistas, por dentro e nas mesinhas da calçada. No dome, igualmente me disseram que os artistas e boêmios tinham-se mudado para Saint Germain des Prés. Viraram existencialistas oportunistas.

Passei pelo Sena, vendo e folheando livros nos antiquários, vendo o rio e suas belas e antigas pontes. Fui ao Marché aux puces em Saint Auen, atravessando Paris de metro. Esse mercado é curioso e imenso, verdadeira cidade – tem de tudo, só cousas velhas e usadas, móveis, quadros, porcelanas, jóias, vestidos da belle époque, alguns bonitos, todos de renda, feita à mão. Pensava eu: “onde estarão as belas donas de tanto luxo?”

As barracas que vendem essas cousas são feitas de tábuas velhas, pretas, em estreitas ruas intermináveis; parecem cemitério, além de tristes e feias.

Tudo muito caro como se fosse nas lojas do centro. Comprei alguns metais antigos, três relojinhos de esmalte, como se usavam no século passado, um tapete algeriano feito a mão e caixinhas de porcelana de Limoges.

Champs-Elysées. Fui diversas vêzes admirar a moda que se apresentava nas grandes casas. Haviam nas suas enormes vitrinas uma profusão de belíssimos vestidos de soirée. Cada mostruário de uma cor só. Pensei: “êsse luxo deve ser para exportação”. Nas ruas viam-se as parisienses, muito simples no trajar, quase todas de taier, prêto ou de cor sóbria, sem adornos. A maioria sem maquilagem. Pareceu-me que antes da guerra cuidavam mais da moda.

tudo inacessível para a bolsa média. fui tratando de minha viagem a Veneza. Comprei numa agência italiana nos Grands Boulevards, a passagem; e alguns dias de hotel, porque nessa ápoca do ano receava não encontrar onde dormir. Agosto é o mês dos turistas em Veneza. Nessa agência venderam-me as diárias no Hotel Bauer, um dos grandes Palaces, porque não havia outro: O quarto com sala de banho, dava para o grande canal.

Chegando lá, deram-me um quarto escurovoltado para os telhados, e um banheiro longe, do quarto, pagando êsse ainda, à parte. Não quiseram saber de nada, aconselhando-me a reclamar na agência, quando chegasse a São Paulo.

O último dia que passei em Paris era luminoso, com um céu azul. Minha irmã Judith havia partido em férias, há alguns dias. Felizmente pude sair da Veneza acarcamanada

Depois de mandar as bagagens para a estação, fiquei desligada para sempre da Rue Severo, nº 8. Como o dia era lindo, fui de novo ao cais do Sena.

Quantas recordações do tempo em que ia aí pintar. Fiz muitos estudos de suas velhas pontes, refletidas no misterioso Sena. A Place Saint Michel com sua bela fonte e seus estudantes andando em grupos e mais adiante, as estreitas e antigas ruelas. La Rue du Chat que Pêche, la Rue des Femmes Sans Têtes, em frente ao Sena, só antiquários e livrarias.

Já estava eu admirando as maravilhosas portas do Notre Dame com suas carreiras de Santos de pedra, magros e duros, alguns com ninhos que os pardais lhes fazem sobre a cabeça, parecendo chapéus. Entrei na catedral. Coado sol iluminava seus maravilhosos vitrais, o interior majestoso e austero. Eu estava ali sózinha. Que bom lugar para a meditação, mas quando de novo me achei fora, pensei que o sol, a luz, o verde das árvores, eram-lhe ainda muito superiores.

Passei a tarde no jardim de Luxembourg. depois de passear pelas aléias, sentei-me perto dos tufos bem cerrados de flores perfumadas como o mel. Fiquei umas horas me recordando dos tempos em que ia pintar com minhas irmãs. Na fonte dos Médicis, os dois namorados de pedra, com seus pombos dando-lhes vida, ali eram os mesmos… E depois de anos me vejo andando com minha caixa de tintas, pelas alamedas de plátanos, ao lado de Riokai, meu namorado. Andávamos devagarzinho, no esplendor de outono, procurando ponto. Nos dias de semana, ninguém por aquêles sítios. Só as estátuas das rainhas, que a brisa ornava de folhas sêcas.

Como eram bons e doces aquêles tempos – e eu, sempre com minha filosofia, pensando: a vida é tão curta, não poderia ser assim até o fim?

Não, a prova é que eu estava ali completamente transformada. Tudo tinha mudado, e as efêmeras borboletinhas brancas e amarelas continuavam a trabalhar, sugando e visitando as flores; vibrando no ar, apressadas, porque iam durar só um dia.

Ao escurecer, larguei Paris ali, e fui direto à estação. Naquela mesma noite, tomei o noturno que me levou no dia seguinte a uma hora na estação central de Veneza.

VENEZA

Quantas lembranças! Aqui passei com meu pai, quando ainda era meninota de luto fechado, mas assim mesmo, achei maravilhoso. Depois, em 1914, estive com uma colega inglêsa, Miss Smith, e agora, sem dúvida, pela última vez. Uma grande gondola preta de proa alevantada levou-me pelo grande canal ao Hotel Bauer. Entrei pelo seu vasto hall, todo atapetado de vermelho, um grande balcão para os gerentes, todos engravatados, belas mobílias e quadros antigos adornavam as paredes. Vários elevadores com seus empregados bem fardados, muitos americanos e estrangeiros. Como nos transatlânticos de luxo, o jantar era servido no belo terraço que dava para o grande canal, e via-se a célebre igreja de Santa Maria das Flores. Tinha que se vestir a rigor e não era meu ambiente. Sempre detestei a vida burguêsa e materialista.

Logo fui tratar de procurar a srta. Ossa, no albergo Marconi, mas ali de nada sabiam. Todos os dias eu atravessava a ponte de Rialto para ter a mesma resposta. O tempo era empregado em revêr essa cidade linda como um sonho, única no mundo, suas velhas casas coloridas a se refletirem nos canais, suas gondolas pretas cortando as águas tão decantadas pelos poetas de todas as épocas.

Por êsse mês de agosto eram só dias claros e ensolarados – passava-se o dia fora. Fui à Bienal que era no Lido. Todos os países estavam representados por seus artistas nos seus pavilhões, em meio aos jardins, muitos trabalhos, mas pouca cousa boa.

Fiquei a manhã toda no Palácio Ducal, em contemplação diante da imensa tela de Tintoreto. Um assombro êsse trabalho, como é que nesse tempo afastado, sem as facilidades de hoje, podia-se fazer uma tela com dez metros de largura por oito de altura? Cheio de figuras bem desenhadas animando êsse Paraíso (título do painel), imaginado por Tintoreto.

Que ventura rever a grande praça de São Marcos com sua catedral inédita no estilo bizantino, com suas abóbadas todas de ouro. Mas o que alegra essa grande praça são seus numerosos pombos, mansos e sociáveis. Pousam de boa vontade nos ombros e braços dos turistas e à s vêzes na cabeça. Os fotógrafos, sempre ocupados, a tirar os hóspedes de Veneza, que irão levar essa lembrança para a vida.

Ao meio-dia, parte um tiro de canhão e todos os pombos voam apavorados de um leão dourado, num fundo azul, em baixo de uma porta. Por dentro das galerias que enquadram essa grande praça, estão belas lojas de rendas feitas a mão, cristais de Murano, cada peça grande, livrarias, caixas de jóias antigas. Sinto não poder comprar cousas que realmente me agradam. Grandes cafés com suas mesinhas se espalhando pela praça, sempre formigando de gente vinda de toda parte do mundo.

Minha preocupação era grande: nada de saber do paradeiro da srta. Ossa. Resolvi ir a Gênova para tomar o vapor Province, mesmo sem ela. Uma viagem escaldante de Veneza a Gênova. Os trens italianos são bem pouco confortáveis para o estio. As poltronas estreitas, forradas de espêssa pelúcia, que aumentava ainda mais o calor. O trem era tão comprido que não acabava mais, parando longe do cais, onde não se podia descer devido aos trilhos.

Nada de se poder comprar um refrêsco, morrendo-se de sêde. Cheguei na acidentada cidade de Gênova ao anoitecer, cansada e fraca. Nada de poder arranjar hotel! Tive que ir para o centro. Passei a noite num hotelzinho.

A primeira coisa que fiz foi ir logo à agência do province. Lá me informaram que havia vindo uma moça à minha procura, que estava no grande Hotel Inglaterra.

Por fim a encontrei. Sua ousadia era tão grande, que ainda queria discutir comigo, que eu não havia estado em Veneza! Tive de lhe pagar a conta do hotel, porque dizia não ter mais um vintém. À tarde, embarcamos no Province. O dia seguinte foi em Marselha. Disse não ter dinheiro nenhum e eu também lhe disse “estou nas mesmas condições, guardando alguma coisa para as gorjetas do fim de viagem”.

Assim mesmo quis descer para vêr a cidade. Chegando ao portão, apareceu o aduaneiro que quis por força abríssemos as bolsas. Ela, nada de querer.

“Então”, disse êle, “não podem sair!” Aí ela abriu a bolsa, que estava abarrotada de cédulas de mil francos. Mas não perdeu o cinismo e disse rindo: “veja só, eu não sabia que tinha tanto dinheiro!”

Ela ainda fêz compras e depois de percorrer a Canebiérre, entramos no Province, para passar dezessete dias no mesmo camarote.

Ela passava o tempo na piscina e nos flertes, deixando o quarto num desleixo incrível. Fiz uma viagem diáriamente contrariada. O ambiente era dos mais burguêses, as meninotas assanhadas para não perderem a ocasião de terem aventuras e mostrarem os vestidos, como sempre escandalosos, de tipo vulgar; mulheres casadas namorando a olhos nus os homens, fazendo conhecimentos para continuação em terra.

Mais uma vez, Barcelona. O navio só ficou duas horas e desci no cais. Ali havia lojas que vendiam lembranças, onde comprei uma bonequinha de castanholas.

Dakar – por mais uma vez tomamos um onibus que passou pelo centro, vendo trechos da grande cidade às pessoas. Os quarteirões habitados pelos europeus, com belos bangalos, os bairros de pretos pobres, com carreiras de casinhas todas iguais. O que gostei de vêr foram os pretos vestidos com seus trajes que lhes ficavam muito bem, os homens de amplas camisolas brancas, ou azul claro, um feitiche no pescoço, o fêz de feltro vermelho na cabeça parecendo um pote embocado; as mulheres, de corpetes ajustados, mangas curtas, grande decote, muitos colares, turbante, largas e amplas saias em cores variadas e vivas. E pensava como ficariam bem os pretos do Brasil com êsses trajes, em vez de usar a moda ocidental, que os enfeiam, não estando apropriada ao seu tipo.

O resto da viagem, até o Rio, passei os dias lendo e pensando no meu futuro, na minha arte. Já fazia uns meses que eu não havia pegado nos pincéis.

Chegamos ao Rio à  noite.

Lá estavam o tio, sr. Altusino e a mãe da srta. Ossa. Fiquei contente de lhes entregar a filha. Eles seguiram até Santos e eu desci no Rio, devido às malas. Fiquei mais um dia para visitar Maria Paula.

Cheguei tão doente a São Paulo, que pensei tivesse de ir a um hospital. Mas não, no dia seguinte estava melhor e fui à casa da srta. Ossa vêr se minha bagagem havia chegado.

Qual não foi minha surprêsa ao vêr minhas malas abertas. Disseram-me que haviam chegado assim. Alguns presentes de perfumes dados pela minha irmã Judith haviam sumido, e outras coisas. Diante da minha resolução de fazer queixa à agência de transportes, disseram-me terem sido êles mesmos que haviam aberto!

CAMPINAS

Como sempre gostei muito da paisagem, por onde ia procurava algum ponto interessante.

Aqui, quem vai fazer paisagem, são homens; ainda se continua segunda a velha rotina – uma mulher é uma mulher, o que é notado não são suas capacidades nem seu talento, é seu SEXO. Não há coleguismo como nas cidades evoluídas. Muitas vêzes me queixei disso; então me convidaram a ir com êles mas isso ficou em palavras. Além dos moleques, ainda há outros dissabores, as moscas, os insetos, o vento que arranca tudo, o sol que queima, fóra os apetrechos pesados; é duro aqui conseguir fazer uma paisagem, não conheço nem um ponto digno de tantos sacrifícios.

Como passeio, há o bosque, um jardim zoólogico. Alguns bichos, como macacos, que vivem na imundície, umas feras em pequenas jaulas, há um museu de história natural, mas como eu tenho horror a bichos empalhados, nunca entrei. Há também no centro de ciências e letras um museu de antiguidades, alguns retratos de Pedro II e de personagens do tempo do Império, tudo em mau estado, estragando-se com a poeira e o relaxamento. O mais são igrejas, conventos.

No Teatro Municipal é que há um curioso pano de boca, representando Carlos Gomes sentado perto do piano e suas óperas esvoaçando à roda dêle, duma concepção engraçada – muitas vêzes pensei em escrever um artigo a respeito com êste título: “INSULTO A CARLOS GOMES”; isso seria um fato único e certamente, os campineiros ficariam ultrajados com semelhante audácia.

A única coisa que faz Campinas suportável é passar às vêzes uma boa fita, donde vivo duas boas horas; algumas verdadeiras viagens; outras, mostrando as verdades humanas.

Sempre minha arte me atormenta; já estou madura, seria tempo de fazer boa e durável pintura, mas ainda não perdi a esperança. Mesmo que entulhe tudo em casa, mesmo que eu saiba que não posso expor e que ninguém se interessa. Fiz muitos retratos, contando já uns dezenove, todos de graça só para o prazer de pintar a figura; alguns não gostaram e depois de uns tempos tiraram o retrato da parede para pôr uma fotografia!

Sempre o artista se estimula pintando com o fim de expor; muitas vêzes me pergunto com que fim pinto; não exponho, sou recusada mesmo no salão de Campinas! Os jornais não se interessam, os grupos de homens que pintam são meus inimigos porque sou mulher, como se a arte tivesse sexo! Mesmo com uma vontade inquebrantável seria de desanimar… Há dias em que sou tomada de profunda tristeza, porque tudo se une contra mim, meu corpo é um dêles e devido à falta de saúde, que estou neste destêrro.

Como dizia Pierre Mille, quando se lê muito e se adora os livros, acaba-se escrevendo. Acho que a literatura tem muitos pontos parecidos com a pintura; não me falta observação, imaginação, mas sim técnica; foi um gosto inato que me fêz amar a leitura desde criança e no decorrer dos anos, adorar os grandes escritores, tendo a surprêsa e a alegria de encontrar neles minhas ideias, meus sentimentos, o que muito me reconforta na solidão em que vivo. Tenho muito material de pintura, muita tela, muitas tintas e pincéis novos, tudo o que Riokai me deixou; muitas dessas tintas estão secando nos tubos. Há dias que abro as caixas – os lindos tubos ainda estão intatos, tudo me diz “pinte, não faça caso das circunstâncias”. Gosto do cheiro das tintas; para mim acordam reminiscências porque nasci pintora, minha palheta é a jóia mais linda que possuo, tenho-lhe tanto apêgo como se fosse um coração dotado de alma… Todas as cores são minhas musas – blanc dargent, jaune de chrome, ocre, jaune, vermillon français, laque de crinson, bleu, cobalt, vert enéraude, brun Van Dyke mas conforme eu pinto, minha palheta muda se é paisagem ou figura. Que idéia! Vou fazer uma série de biombos, uma exposição de coisas decorativas, de três folhas, decoradas com flores do Brasil; belos motivos não faltam. Começo a mão na obra, mas a armação sai cara – de um lado é pintado e de outro, forrado com sêda; vai tinta fina, ouro em pó e verniz; vou empregar um capital; quanto ao trabalho me apraz fazê-lo de graça; tenho diversos croquis. Um primeiro que empreendia foi no estilo japonês, de papel esticado dos dois lados, rosas; e com fundo de ouro e uma roseira em flor e outro, o fundo azul e as decorativas e grandes flores vermelhas, bico de papagaio. Para ter uma idéia do que podia ser expondo alguns, mandei para uma casa do centro de finos estofados e expuseram na vitrina. Ficou uns três meses lá; afinal vendi para recuperar o dinheiro do material, Cr$ 2.500,00.

Não dão o mínimo valor à  mulher pintora ou intelectual. Os homens fogem. Às vêzes, há um ou outro, muito raro, um pouco melhor que as mulheres. Mas não se pode travar conhecimento com êles, porque pensam logo ser de natureza diversa. As mulheres não gostam e se afastam de uma mulher evoluída. É inveja no seu subconsciente atrasado.

Convido-os a virem ao meu atelier. Os homens e suas esposas sabem que passei longos anos no Japão. Tenho de lá muitas cousas, reproduções, fotografias, belos quimonos, objetos preciosos, mas nem a título de curiosidade querem vir. Nada os interessa a respeito de arte, tão pouco os livros. As mulheres e mesmo os homens, não querem cansar a cabeça. Para quê? Os jornais e revistas informam. Vi pessoas alinhadas lerem o Guri e o Gibi. São maliciosos e só pensam em intrigas sexuais. Não se pode conversar muito tempo com um homem ou se é o meu caso, receber um colega porque já colocam as cousas do lado animal.

E assim, vivo comprimida entre dois lados, completamente só. À noite, vou ao cinema, à s vêzes; é a única diversão agradável quando há uma boa fita. Nem teatro – só à s vêzes, mas sem valor. Festivais de rádio são pouco interessantes para uma pessoa culta.

Minha grande preocupação é a pintura – penso constantemente, sonho em fazer grandes telas, paisagens, composições, retratos. Na Odisséia de Homero acho meus assuntos prediletos: Ulisses na ilha da ninfa Calipso, Nausika, filha de rei. Gostaria de tentar cousas audaciosas, mas num harmonioso equilíbrio, como fazê-las?

Mesmo os empreendimentos mais modestos são cheios de obstáculos. Exposição individual a um público indiferente é verdadeira amargura. Tira todo o entusiasmo do artista. Na parte comercial, nada se vende. Material caro, custoso, molduras, transportes, convites para ninguém se interessar. Os que pintam, vêm só para criticar. São maldosos. Os jornais se esquivam de escrever. Pela manhã faço minhas refeições, trato de minha gata Rosinha, arrumo meu interior. Gosto de ter um ambiente limpo e agradável, cuido de minhas roupas; gosto de parecer mais moça. Como nunca fui bonita não sofro ao vêr meu rosto no espelho – antes era comprido e magro, boca grande, pouco queixo, olhos escuros e grandes, expressão inteligente e triste, cabelos castanhos escuros – agora muitos dêsses traços se modificaram talvez para melhor…

Em ideias ainda sou exuberante e entusiasta pelas coisas que me parecem justas e belas…

Estou certa de que sou da mesma essência dos que me rodeiam; afastei-me demais procurando progredir, evoluir; também nunca tive a sorte de ter algum amigo importante ou parente que me ajudasse; estou convencida que com a própria capacidade ninguém sobe. Precisa-se neste mundo achar quem sirva de escada para se arranjar alguma coisa… O único que me ajudou e ficava feliz com meus sucessos foi Riokai, meu Amor. Oito anos que estou morando em Campinas, oito anos perdidos, de luta surda no silêncio. Poderia ter sido útil a tantas coisas; entretanto, ninguém me procura, ninguém no meu bairro ou rua se interessa; conheço muita gente mas não seria capaz de dar um passo para vêr meus quadros ou ouvir no piano as músicas do meu repertório, ou simplesmente, conversarem sobre as inúmeras viagens que fiz, minha longa estada no oriente, a guerra que passei, lá, meus belos quimonos, etc. Não, só dão valor a quem habita num rico bangalo, tem automóvel de luxo, faz viagem aos Estados Unidos em aviões a jato, tem marido e numerosa família. Nunca se ouve dizer que uma mulher é muito inteligente ou tem muito talento, mas sim “ela é muito rica”. “Essa gente vai à missa, se confessa e comunga, mas não faz a menor coisa para melhorar a situação do próximo – são supinamente materialistas e mesquinhos. Moisés deveria vir uma segunda vez para pôr abaixo o bezerro de ouro, que êles adoram.

A rua que habito é deserta e erma; raros são os transeuntes; o que dá mais vida são os gritos e clamores dos moleques que a certas horas andam pela rua Capitão Francisco de Paula.

Há muito tempo alimento o projeto de ir a Buenos aires; estou com dois caixotes, um grande e outro pequeno com as telas das ruas de Paris de Riokai. Como me preocupam os trabalhos dêle! Sempre venho pensando, quando eu não existir, que será feito dessas obras? Já tive uma amostra da exposição das telas dêle, que fiz em São Paulo, em maio de 1958, no salão do cinema Niterói – pouco vendi e a maioria me voltou.

Ainda conservo magníficos amigos em Buenos Aires, sr. e sra. Yokohama; escrevo a êles se seria possível fazer uma exposição em Buenos Aires, das ruas de Paris de Riokai – tomaram informações a respeito, e acharam que sim, que eu devia tentar. Nos fins de dezembro de 1958 estava eu tomando o Santos-Maru, chegando à  capital portenha, dia 1º de janeiro de 1959. Fui acolhida no cais pela filha da sra. Matilde, Yolanda Yokohama Galardo, pelo sr. Konomi Miyamoto, chefe de Imigração, estando meus amigos nessa ocasião no Mar del Prata. Mas assim que chegaram, foram me buscar no hotel, me levaram quase à  força para a casa dêles, onde fui hóspede durante vários dias; me receberam com a máxima cortesia. Fui alvo de todas as finezas e delicadezas no seu belo chateau, onde estavam as ricas coleções do sr. Yokohama, objetos preciosos e antigos; sendo êle um erudito em assuntos orientais, expos os quadros de Riokai numa das salas e ficava admirando as telas dêle, à medida que ia tirando dos caixotes. Suas gentilíssimas filhas, Norma, uma intelectual e Yolanda, uma artista no canto, possuindo bela voz de soprano ligeiro, conhecida em vários países por seu talento, sua mãe sra. Matilde, tendo sido uma exímia cantora.

Apresentaram-me ao embaixador sr. Massao Tsuda, que nos recebu muiuto cordialmente e disse que gostava e já conhecia as obras de Riokai Ohashi; prometeu patrocinar, depois fomos à casa dêle, onde a esposa nos recebeu muito bem no grande salão; uma senhora simples, encantadora; saímos de lá contentes. O prédio dava numa linda praça toda arborizada; sobre a porta, brilhava o crisântemo imperial de ouro, de dezesseis pétalas.

Foi fixada a exposição para o 13 de julho na Galeria Velasquez. infelizmente, não pude ir assistir à inauguração, que foi um fato notável, registrado nos anais da arte; foi um sucesso e também de venda, mostrando quanto a elite argentina é culta em questão de artes. Devo tudo à minha exímia amiga sra. Matilde Yokohama, que organizou e arranjou uma ótima galeria; as molduras eram lindas, o que também realçava as obras. Fico feliz por ter feito o máximo que pude para sempre mostrar e levantar a memória de meu saudoso Riokai, morto tão moço e que êle mesmo não pode colocar suas obras. Foi para mim a realização de um grande desejo, e também de sossêgo, pois a maioria das ruas de Paris ficarão agrupadas em Buenos Aires.

Em 1958. Tinha mandado duas telas ao salão japonês Seibi-Kai, salão de artes plásticas, comemorativas do cinquentenário da imigração japonêsa no Brasil. Não só fui aceita como uma das telas foi adquirida e premiada; não pude ir à inauguração, estava bem doente, chorei de emoção quando tive a notícia…

Às vêzes vou a São Paulo para me distrair; volto à noite, cansadíssima. Vou vêr Isabel, minha sobrinha, meus sobrinhos-netos, todos felizes, vivendo normalmente e achando o mundo ótimo. Isabel é uma linda mulher sempre sorridente, com idéias da época; seu marido, um belo rapaz sadio de rosto redondo e dois olhos do mais intenso azul – otimista, atarefado nos negócios, boas roupas. “Sem dúvida, digo eu cá dentro, deve ser êsse o caminho da felicidade…”

Estou no Rio e com muita vontade de conhecer Ouro Prêto. Num belo dia de outubro de 1958, eu e Margarida, estamos na rodoviária à espera do onibus Belo Horizonte; passamos pelo Hotel Quitandinha e atravessamos o centro de Petrópolis, seus jardins engalanados de hortências. Parou o onibus em Juiz de Fora. Achei uma viagem cansativa, a todo momento torneando grandes montanhas; chegamos à noite em Belo Horizonte, com uma chuva torrencial mas um doce perfume das magnólias em flor veio ao nosso encontro.

No dia seguinte visitamos o centro, mas achei inferior a São Paulo; à tarde, debaixo de chuva, fomos tomar o ônibus para Ouro Prêto. Passava-se por estreitas estradas contornando as montanhas e rente aos precipícios que davam arrepios. Chegando lá à tarde, ficamos maravilhadas pelo que já estava se vendo. Nosso quarto dava para a igreja de São Francisco de Assis. Nos dois dias que ficamos nessa cidade, onde tudo são recordações de um rico e magnífico passado, não perdemos tempo, ficando o dia todo fora, apreciando a gloriosa arquitetura do grande Aleijadinho, as inéditas igrejas tão belas por fora como por dentro, suas ladeiras empinadas, com suas curiosas casas de um lado e de outro; suas fontes onde Marília de Dirceu conserva sua romântica sombra; visitamos o museu da Inconfidência – gostei imensamente, muito bem organizado, porcelanas, móveis de grande valor, obras em madeira, esculpida do mestre Aleijadinho.

Mariana, uma bela cidade, mas não chega à beleza de OURO PRETO. Voltamos para o Rio felizes por ter visto tantas maravilhas e desejosas de voltar na primeira oportunidade, com minha caixa de tintas e rolo de telas.

Sim, ainda estou em Campinas! Tenho trabalhado bastante, feito composições. A Odisséia de Homero tem me inspirado. Gosto de me lembrar dêsses tempos fabulosos onde havia uma vida vibrante entre homens e deusas. Calipso, essa loura e vaporosa ninfa, muito me deleitou ilustrar sua lenda, vivendo nessa ilha feliz, nutrindo-se do néctar, bebida dos deuses, coroada de violeta, seus dias passavam-se cantando intermináveis melodias. Um dia, um náufrago perdido no oceano veio perturbar-lhe a quietude… Narciso, outro assunto meu predileto. Belo e jovem, nunca tinha visto seu rosto perfeito. Um dia, inclinando-se à beira de um rio, viu seu reflexo espelhado e ficou ali prêso de amor à sua imagem até morrer… Numa densa floresta, as ninfas apavoradas fogem perseguidas por sátiros e faunos ao som de flautas e pandeiros. Tenho uma boa coleção dessas composições sobre papel.

Minha gata Rosinha tem sido também um bom modêlo, só ou com seus filhos. Também vou expor rosas e paisagens. Estou decidida a fazer minha exposição. A campanha vai ser dura para arranjar um local. Estamos em fins de 1962. Peço o Teatro Municipal. Não me dão dizendo que os cavaletes para pendurar os quadros estão em consêrto. Levo uma boa parte de catálogo, fotografias, artigos de minhas passadas exposições em Paris, no Japão e no Rio ao dr. Marino Ziziatti, que me cedeu a sala térrea do Centro de Ciências e Letras para setembro de 1963. Estou contente por expor meus trabalhos. Janeiro – já penso nas miudezas que se precisa para realizar uma mostra de arte. Catálogos, já trato dos convites, das molduras, dos que poderão escrever alguma coisa, fazendo êsses preparativos bem antes para minha exposição de 1963.

Um bom e prestimoso amigo surge: o sr. Goto e sra., que muito me ajudaram transportando os quadros todos do atelier ao Centro de Ciências e quando teminou trazendo-os de volta ao atelier. Ele foi quem estreou a exposição adquirindo um quadro de rosas.

A 4 de setembro de 1963, a entrada do Centro de Ciências estava repleta de convidados e amadores, que esperavam a hora solene de cortar a fita simbólica. Tive bons artigos, saindo do escuro em que estava há anos. Economicamente, me disseram que, eu tinha batido o recorde. Minhas rosas e gatos foram os mais apreciados, não havendo ainda público para gostar de mitologia.

Foi para mim uma bela noitada a inauguração de minha exposição. Minha família veio toda de São Paulo. Minha irmã, meu cunhado, Isabel, minha sobrinha. Durante os dias em que a exposição ficou aberta para o público, tive o ensejo de conhecer vários rapazes interessante, inteligentes, gostando de arte, mas principalmente de livros. Muitos com idéias revoltadas, contra o atraso mental dêsses que se tem na conta de gente da elite. Fiquei surprêsa ao encontrar essa juventude, com muito das minhas idéias e convicções (Com a inflação e a alta de custo-de-vida ninguém pensa em comprar quadros).

1964 continua para mim a mesma coisa. Tenho uma boa amiga, sra, Maria Rosa Peciolle Sampaio. Gosta da minha pintura e da Arte. Ela adquiriu boa parte de meus melhores quadros, que ornam seu salão. outra amiga que muito estimo é a sra. Amélia Sakamoto, mas ela mora longe, em São Paulo, no Alto do Ipiranga. Últimamente ela estêve no Japão, e viu vários amigos que conheci em 1940. Recebo à s vêzes cartas de amigos do Japão, que me dão garnde alegria, como as do prof. Miamoto Massakio, homem ilustre, conhecido na literatura, tendo vários livros editados, que traduziu o livro de arte que fiz de Riokai Ohashi e sua obra. Outra grande amiga que tenho, conheci logo após chegar ao Japão em 1934 e até hoje me escreve: é a sra. Natsuko Ueno, que me foi de preciosa ajuda na doença de Riokai, durante a guerra.

Em 1965, mais um acontecimento me estava reservado. Fui visitar bons amigos em São Paulo. Conversando com Eico Suzuki, arquiteta, pintora e escritora, disse-lhe como ficaria feliz se fizesse uma exposição das obras de meu saudoso Riokai, das que êle fêz no Brasil em 1940 e 41. Mas era muito difícil encontrar local.

Nisso, chegou o pai dela, o ilustre arquiteto e pintor dr. Suzuki (23), como sempre vivo, sorridente, comunicativo:

“Dona Helena, faça a exposição no centro Cultural Brasil-Japão, do qual fiz o edifício. Amanhã de manhã a senhora me procura, que lhe apresentarei aos maiorais do Centro Cultural e ao dr. Suzuki, “disse êle rindo”, tem o mesmo nome que eu e me substituiu na presidência da sociedade Seibikai dos artistas japonêses”.

(24) SUZUKI, TAKESHI (1908 – 1987) foi o primeiro japonês a formar-se arquiteto no Brasil, em 1933, pela Universidade Mackenzie em São Paulo. Pintor, foi aluno de Teodoro Braga e foi o primeiro presidente do grupo artístico Seibikai, fundado em 1947, cargo que ocupou por dez anos, e do Grupo Guanabara. Projetou e construiu vários edifícios, entre eles o Centro-Cultural Brasil-Japão e o Pavilhão Japonês, no Parque do Ibirapuera. Foi o primeiro presidente do Hakuiokai, grupo de teatro clássico Noh (1960 a 1987) e foi o primeiro e único instrutor de Noh na América Latina, diplomado pelo chefe do estilo Hõsho. Publicou o livro “Budismo – Do Primitivo ao Japonês” em 1986.

No dia seguinte, já ficara tudo arranjado para o dia 10 de junho de 1965. Nesse dia de manhã, grande parte dos artistas dessa sociedade ajudaram a armar a exposição; em algumas horas ficou bem apresentada uma linda mostra em homenagem a Riokai Ohashi.

Essa exposição durou três dias, havendo um coquetel; muitos amigos, que Riokai tinha conhecido em 1940 vieram, pintores hoje de renome como Takaoka (25), que fêz a apresentação no catálogo, ao lado do grande pintor Koisso Riohê, do Japão.

(25) TAKAOKA, YOSHIYA (1909 – 1978) pintor japonês radicado no Brasil, participou do Salão de Belas Artes em 1933. No Salão Nacional de Belas Artes de 1939, conquistou a medalha de prata. Ficou no Rio de Janeiro até 1944. Em São Paulo, foi um dos fundadores do Grupo Seibikai de pintores e participou do Grupo Guanabara, que esteve ativo de 1950 a 1959. A Pinacoteca do Estado possui um autorretrato de Takaoka.

Todos os compradores dos trabalhos de Riokai foram japonêses; meu cunhado Luiz do Rêgo Rangel foi uma exceção.

Todos me ajudaram, estando eu hospedada em casa de minha irmã Margarida. Isabel, minha sobrinha, seu marido e filhos, minha irmã e o cunhado foram todas as noites à exposição; tive também a alegria de estar com velhos amigos, que fazia anos não via.

Dr. Suzuki fêz muito para o êxito da exposição, tanto na parte de arte, me levando às redações dos principais jornais japonêses e arranjando compradores para indenizar as grandes despesas que tive. Minha boa amiga sra. Amélia Sakamoto veio me fazer companhia e tivemos longas conversas sobre o Japão, onde ela tinha estado recentemente. Seu filho Roberto trouxe seu amigo Sassa, recém-chegado do Japão, rapaz inteligente, fotógrafo exímio, que ilustrou vários trechos da exposição, grupos de amigos, quadros, e me fotografou perto do retrato de Riokai, que fiz no Japão em 1942, e guardo como querida lembrança.

Fiquei contente por haver conseguido fazer essa exposição. ainda me restam numerosos estudos feitos durante a estada dêle no Brasil, mas sem esperança de expô-los devido às dificuldades cada vez mais crescentes. Faltam alguns dias para surgir o novo ano. Em arte, poucas realizações serão feitas. A inflação cada vez mais se acentua e os preços dos bens de consumo, e outros, aumentam.

Sómente os “tubarões” é que não apertam o cinto e se aproveitam com a inflação.

Meus pensamentos e minha arte são minha fortaleza. Ainda pintei meu autorretrato (como me vejo), não só por fora, mas o espírito que me anima; dálias vermelhas, descobri novos movimentos nas flores e nas folhas. Isso sim, ainda me dá apêgo à vida.

Gosto de escrever (alguma cousa) de tudo quanto ferve e me comprime de revolta, no meu espírito curioso e refratário ao rebanho em que vivo. Os componentes dessa massa só dão valor ao dinheiro. Tem carro? De luxo? Viaja aos Estados Unidos? Tem vasto bangalô com criados? É o que faz a nobreza dessa casta inculta e materialista.

Para essa gente, sou uma mulher de idade indefinida, alta, magra, viúva, de óculos escuros, que mora só com seu gato, às vêzes se encontra na rua quando se vai às compras.

As mulheres, minhas vizinhas, com as quais raramente falo, não têm o mínimo cultivo, são mães de família que nem mesmo tempo para ver histórias em quadrinhos têm. A casa, os filhos, a religião, os vestidos e penteados, doenças, etc., tomam todo o seu tempo.

Eu me retraio cada vez mais no divino refúgio, que para mim é fora do tempo e que sempre adoro: a Arte!

Helena Pereira da Silva Ohashi.

15 de dezembro de 1965.

FIM

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abrademi

14 comentários sobre “Helena Pereira da Silva Ohashi

  1. Hoje vi desenhos de Helena no Museu da Cidade de Ashiya. Sou grata a esse site por trazer tantas informações sobre ela. Não conhecia nada e achei muito interessante.
    Os desenhos estavam em uma exposição com parte da obra do marido dela, que exibia obras salvas no Grande Terremoto de 1995. Não é uma exposição permanente, mas o museu detém algumas obras dela. Obrigada!

    1. Cara Olivia Yumi Nkaema

      queria muito ter visto essa exposição

      meu doutorado é sobre Helena Pereira da Silva Ohashi e você saberia me informar onde posso encontrar informações sobre ela e seu marido Ryokai Ohashi?
      alem do museu teria outras instituições que posso procurar?

      1. Cara Marcela, posso dar uma olhada nos sites em japonês e nas fotos que devo ter tirado da exposição. Fico muito feliz que você esteja trabalhando este tema. Gostaria muito de ler seu doutorado depois. Pode me passar o seu email? O meu é olivia.yumi@gmail.com . Se eu esquecer, me cobre, pf?
        Obrigada
        Olivia

    2. O seu quadro da mulher com a jarra na mão despejando Água no pote com pepinos é uma obra prima. Tenho uma reprodução a óleo sobre tela em escala menor e admiro muitíssimo.

      1. Cristovão José Zygmunt Wieliczka estou montando projeto de doutorado sobre Helena Pereira da Silva Ohashi
        Você poderia me enviar por email a foto deste quadro que vc menciona no comentário?
        Iria contribuir para minha pesquisa
        email: unicamp05@gmail.com

        grata

        Marcela R Formico

          1. bom dia Cristovão José Zygmunt Wieliczka

            hoje, 13 de maio de 2016 recebi sua resposta mas a imagem do quadro eu ainda não recebi
            aguardando com grande expectativa

  2. Olá. Por favor entre em contato por e-mail. Motivo : brochura riokai ohashi e livro minha vida. Minha sogra quer fazer contato. Grata.

    1. Cara Sra Maria Tereza Osorio Mallmann Franco,

      Você está procurando a brochura de Riokai Ohashi e a biografia de Helena Pereira da Silva Ohashi? Ou você tem interesse de encontrar estes exemplares?
      Sobre o livro “Minha vida” sei que na pequena biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo existe um exemplar para consulta.
      Já a brochura de Riokai Ohashi também tenho interesse de localizar para a minha pesquisa de doutorado
      Espero ter ajudado de alguma forma.

      Prof. Marcela Regina Formico

  3. Boa tarde, Marcela Formico.
    Olhando umas informações sobre a pintora Helena Ohashi eu vi os comentários no abrademi.com, onde vc diz estar realizando um trabalho sobre a artista.
    Eu possuo dois livros, um a historia “minha vida” da própria Helena Ohashi e o livro sobre seu esposo o pintor Riokai Ohashi, com o título “Paris ET Japon As vie ET son ouvre”.
    É um livro em francês ilustrado e que Tb foi feito pela Helena Ohashi.
    Caso preciso ainda de algum subsidio para sua pesquisa achei interessante, dar a possibilidade de vc se quiser olha-lo.
    Possuo Tb um quadro pequeno do Riokai.
    Atenciosamente.

    Ricardo

    1. Bom dia. Estive no Ashiya City Museum of Art & History, que fica na cidade onde o casal Ryoukai e Helena Ohashi viveram muitos anos. Nesse museu consegui adquirir um pequeno livro onde consta pouca coisa sobre o casal. Mas esse local é interessante, porque sempre reuniu movimentos de artistas plásticos e dá para entender como viveu esse casal. Numa viagem ao Japão, recomendo muito que visite o lugar. Francisco Noriyuki Sato

    2. Bom dia, Ricardo. Meu nome é Madalena Cordaro, profa. da ECA-USP. Estou fazendo pesquisa sobre o casal Ohashi. Busco o livro “Paris et Japon vie et son ouvre”de Riokai Ohashi e vi que o senhor o possui. Gostaria de consultá-lo…
      Com pandemia, não sei como poderí­amos fazer. Deixo meu email abaixo. Obrigada.

      mn.cordaro@usp.br

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