Aula de Osamu Tezuka para a Abrademi

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Palestra de Osamu Tezuka (íntegra)

Nos 40 anos em que desenhei mangá, encontrei com muitos grupos como de vocês em Tokyo, New York, Los Angeles, San Francisco ou mesmo em Paris. Orientei muitos jovens e avaliei suas HQs. Estou contente em encontrá-los pela primeira vez, aqui no Brasil, mas como profissional vou avaliar seus trabalhos com muita severidade, por isso gostaria que não ficassem zangados com o que disser, ou que não desanimassem achando que não São capazes ou desistissem de fazer mangá. Pelo contrário, gostaria que participassem ativamente da ABRADEMI. Bem, aceitem isso como observação de um velho.

tezuka84-01Em Los Angeles ou em Paris, ou mesmo em Tokyo, o que digo a todos em primeiro lugar é que nunca imitem os profissionais. Explicando em poucas palavras é notório que vocês São fanáticos por mangá, que cresceram lendo mangá, e que por isso agora estão fazendo mangá. E Já que cresceram lendo mangá de muitos autores, quando gostam de um determinado autor acabam sem querer por imitar seu traço.

É verdade que eu gostava muito de Disney e, quando era criança, imitava sempre os desenhos de Walt Disney, mas isso só quando estava no primário e no ginásio. No colegial, já estava me profissionalizando.

Imitando os outros, não vai passar disso. Isto porque ao ser comparado dirão por exemplo que: “Ah, este desenho parece com o do Maurício”, ou coisa parecida, pior quando perguntarem como É seu desenho. não convém ter que dizer que É parecido com o do Maurício.

Antes de ontem (30/9) na exposição, vi desenhos de muita gente, mas notei que principalmente os desenhos das mulheres pareciam muito com os de revistas de mangá feminino da atualidade. Aquele tipo de desenho não presta, de forma alguma. Se ficarem fazendo aquele tipo de desenho não vão se tornar mais hábeis do que isso. Além do que não passa de uma ilustração feita como passatempo. Acho desejável que parassem definitivamente de fazer isso. Se ainda querem fazer mangá dessa forma, não precisam entrar em grupos como este, podem ficar fazendo mangá apenas para seu divertimento.

É claro que podem ler mangá, mas o que deve ser aprendido é a forma de elaborar o conteúdo, pois os desenhistas profissionais, como têm prática, São muito hábeis em ressaltar o que é essencial para o humor do mangá. A técnica de desenho pode ser aprendida aos poucos e com o tempo torna-se hábil.
As HQs norte-americanas chamadas underground comics têm desenhos tão horríveis que nem podemos ficar olhando. São realmente mal feitos, mas o conteúdo é extremamente engraçado, bem original. Por isso acho que o mangá é constituído 80% de ideia e 20% de desenho.

Mesmo desenhos de ficção-científica, de modo geral, imitam obras de autores dos EUA. Suas cores, por exemplo, São lindas, mas têm a sensação de já ter visto em algum outro lugar. Para mim, os desenhos podem ser mal feitos e as cores feias, mas gostaria de ver desenhos que nunca foram feitos e ideias que nunca foram desenvolvidas antes. Os desenhos poderiam ter deixado para outra vez, pois aos poucos, digamos dentro de 5 anos, ficarão ao nível profissional. Por isso, acho que as pessoas, que só ficam estudando técnica de desenho pensando que se não fizer isso, não poderão fazer mangá, não serão autores profissionais de mangá. Estas estarão sempre desenhando por diversão.

Há 40 anos, estudei o tipo de mangá que pode ser chamado de “mangá em painel” (tiras de jornal), que chamo de panel comics, pois parecem cartazes com desenhos em sequência. Considero-o como a forma básica muito importante de mangá. Há vários tipos: de dois ou de quatro quadros. No primeiro quadro inicia a história com uma ideia e no último termina fazendo rir. Este padrão de introduzir uma ideia, desenvolver e terminar de forma cômica, se condensar tornará um mangá de um quadro e se desenvolver tornará uma HQ mais longa.

Mesmo em mangá de muitas páginas, a estrutura básica é a mesma. O mangá não é um simples desenho e precisa de ideia, acho que devem estudar a técnica de estruturação da ideia, e para tanto, devem estudar a estrutura de mangá das tiras de jornais, o que será muito proveitoso.

Por muita felicidade, aos 19 anos, fiz pela primeira vez tiras para jornal, em série. Evidentemente, os desenhos eram miseráveis, tanto que se vocês vissem iriam rir. Eram realmente horríveis, mas permitiu estudar a estruturação da ideia na prática, pois foram publicados no jornal em série por três meses. Naquele momento, incuti na minha cabeça os fundamentos do mangá. Naquela época, como era jovem de 19 anos, levei meus trabalhos à redação do jornal e o funcionário disse-me que poderia publicar, mas deveria desenhar 30 folhas por dia. Era selecionado um mangá entre esses 30 e os demais eram descartados. Como durou por 3 meses, desenhei 2700 folhas. não era treino de desenho, mas aprendizagem do fundamento a que me ofereci a executar. Isso foi bastante proveitoso, pois depois comecei a fazer mangá mais longo, e então jJá tinha aprendido a técnica de elaboração de uma história, do início até o fim.

Sinto muito se os profissionais aqui presentes acharem que estou falando banalidades, mas estou me dirigindo aos amadores principiantes para que estudem esses fundamentos em tiras de jornal.

Havia na exposição desenhos de ficção científica, de fantasia que eram realmente admiráveis, as que estavam bem feitas. Para autores desse tipo de desenho gostaria de dizer uma coisa. Há exposição para esse tipo de trabalho em San Diego, San Francisco, e mesmo em Tokyo, e acontece que, quando estão expostos lado a lado com outros desenhos, pode não sobressair, mesmo que individualmente seja vistoso. Isso é percebido somente quando estão no meio de outras obras. A razão disso não está na cor, mas acho que está na ideia. Parece que estão fazendo uma variação de um modelo já feito. Isso acontece por admirar obras de desenhistas famosos, pois ao achá-las excelentes, inconscientemente estão gravando na memória, e ao compor um desenho, acaba por deixar transparecer a influência. Isso é natural, mas deve ser evitado a todo o custo, pois mesmo que faça uma boa obra, se está parecido com o de um autor famoso, ao ser comparado com obras de profissionais, será vista como uma imitação.

Comentários sobre os desenhos submetidos à apreciação de Osamu Tezuka

Notei na exposição também que uma pessoa tinha feito diversos tipos de desenhos e, ao ser indagado, respondeu que foi a pedido do editor. Bem, mesmo que o editor peça para fazer isso na medida do possível é melhor recusar. Pode dizer até que não é versátil. O editor pode não procurar mais por seu serviço, mas quando você se tornar um profissional consagrado, daqui digamos 10 anos, pela primeira vez pode apresentar um trabalho de estilo bem diferente para surpreender o mundo. Acho que isto é mais proveitoso, pois se você desenhar vários estilos quando estão se lançando, ninguém saberá qual é seu desenho, os editores acharão que desenhará qualquer coisa que pedir e não considerarão como artista, mas como “fazedor de desenho”.

Acho melhor sedimentar logo seu estilo e depois partir para outros. Como podem ver nos livros que entreguei ao Sr. Sato, faço desenhos de muitos tipos: para adultos, para crianças, para meninas, mas isso depois de me firmar no meu estilo. Se não fizer isso o reconhecimento de seus desenhos pelos leitores vai demorar.

Sobre os desenhos de meninas

“Estes não prestam. Por que desenham isso? Bem, não estou depreciando, mas digo que não prestam porque só desenham esse tipo de coisa. Nós chamamos isso de “bonecas”. As moças que gostam de mangá, em primeiro lugar fazem esse tipo de desenho e sempre voltado para a esquerda. Isso porque desenham com a mão direita. Se a pessoa for canhota desenharia o rosto virado para a direita. Isso acontece porque estão desenhando o que gosta mais por puro prazer, de modo mais fácil. É bom desenhar por divertimento, mas isso não passa de hobby, não é caminho para mangá. Essas pessoas leem avidamente as revistas femininas de mangá.

Acho que há cerca de 30 milhões de garotas assim, só no Japão, dentre elas mais ou menos 5 milhões conseguem desenhar assim, ou um pouco pior, mas em todo caso consegue desenhar “bonecas”. Meninas que gostam de mangá, que adoram ler revistas de mangá, que conhece o nome dos autores e que só sabem desenhar “bonecas”, acho que não têm mérito para entrar na ABRADEMI. Se querem estudar mesmo o mangá, mesmo que não queira se profissionalizar, não podem ficar nisso. Não fiquem desiludidas com que disse, nem pensem em desistir de fazer mangá, tomem como observação de um velho desenhista de mangá e esforcem-se bastante.

tezuka84-02Em Tokyo, faço parte do júri do Yomiuri Kokusai Manga Contest (Concurso Internacional de Cartoon do Jornal Yomiuri), que recebe do mundo todo cerca de 3.000 trabalhos. Dentre esses, são em maior número da Europa Oriental com mais ou menos 1.000, a seguir do Canadá, da China, da URSS, até mesmo da África e também do Brasil.

Para efeito de julgamento são separados conforme os países, entretanto, os trabalhos do México, Brasil, Peru, Nicarágua, Equador, Guatemala, Bolívia, ou seja, os mangás da América Latina em geral, não possuem uma característica nacional evidente. Gostaria de ver logo um mangá que indiscutivelmente tenha característica brasileira especial feita por vocês. Mesmo em HQ de Mauricio de Sousa, como de outros autores profissionais que publicam nos jornais brasileiros não se podem ver ainda características genuinamente brasileiras, apesar de fazerem desenhos maravilhosos. Acho que isso é tarefa para daqui em diante.

Disse coisas realmente duras. Talvez tenha gente que depois queira me pegar na rua, mas não me levem a mal. Os profissionais de mangá geralmente depreciam-se mutuamente. Quando são rivais do mesmo prestígio pode acontecer de brigarem, mas os veteranos criticam os trabalhos dos novatos não por maldade ou implicância. No caso de vocês, disse coisas duras porque gostaria sinceramente que tornassem desenhistas de mangá de primeira linha no Brasil. Mas se alguém se zangou com o que eu disse, ignore que me referi aos desenhistas brasileiros e esforce-se.”

Pergunta sobre as associações de mangá no Japão

Associações de mangá existem vários no Japão. O Nippon Mangaka Kyokai tem 500 associados, mas só de profissionais. Para amadores, há mais ou menos 3000 associações, essas são na maioria grupos com número de associados como o de vocês, mas há os que têm mais sócios, chegando a 300 ou 500. No Japão, contado as moças desenhistas de mangá, existe um número fabuloso, quase 10.000, dos mais 70% são garotas. E a razão para isso é que com mais ou menos 16 anos desenham “bonecas”, montam historinhas românticas com garotos bonitos e diálogos e final feliz, e mesmo assim as editoras publicam. Então, se declaram profissionais, contratam assistentes, constroem casa de férias, compram carros e ao casarem encerram a carreira. Eu não considero essas desenhistas profissionais de mangá de forma alguma. Bom, a associação de desenhistas de mangá a que pertenço é de profissionais sérios. Há uma associação só de veteranos chamada Mangá Shudan com cerca de 100 associados, todos desenhistas famosos liderados por Fujio Fujiko, que desenha Doraemon, Leiji Matsumoto, Fujio Akatsuka, entre outros.

Todos com mais de 50 anos, não há gente mais jovem. Daqui a pouco vai decair, pois estes vão se aposentando e vão sobrar só as moças desenhistas. Visto assim, o futuro da HQ japonesa é negro. Isso já acontece nos EUA. Lá não há desenhistas jovens de mangá com fama. Os americanos ainda estão editando Super-Homem, Homem-Aranha, Mandrake, Fantasma, Dick Tracy etc., por isso as HQs americanas não evoluem. Na França há um pessoal jovem de valor, porque o governo tem apoiado. Há um festival de HQ todos os anos reunindo até desenhistas alemães e japoneses, com apoio do atual presidente.

Para quem vai estudar mangá de agora em diante é melhor ficar de olho na HQ francesa do que dos EUA. Bem, HQ evolui mais nos países em que há maior liberdade para escrever sobre o mundo e sobre a política de governo.

Vocês são jovens, por isso, devem ter muitas coisas que queiram desenhar, mas o que gostaria de ver fazendo é humor que retrate com rigor o mundo e a política. Isso é essencial para desenvolvimento e para reconhecimento da HQ brasileira.
(OBS: Osamu Tezuka cita em quase toda sua fala a palavra “mangá”, que no caso é usada como sinônimo de “histórias em quadrinhos”.)