História do mangá antes da II Guerra

Passada a II Guerra Mundial, os imigrantes japoneses, cuja fixação em terras brasileiras se deu a partir de 1908, respiraram aliviados. Durante o período de conflito, a simples reunião de japoneses fora proibida, além de serem proibidos os livros e jornais em idioma japonês. As escolas de idioma japonês foram fechadas (havia 294 escolas fundadas por japoneses só no Estado de São Paulo) e muitas residências foram revistadas a fim de se apreender quaisquer materiais subversivos, ou seja, qualquer coisa em idioma japonês, de cadernos a livros para crianças e também aparelhos de rádio. Na foto abaixo, uma livraria japonesa em 1939.

Assim, sem meios de comunicação, a notícia da rendição japonesa, ocorrida em agosto de 1945, demorou a chegar nas casas de imigrantes, principalmente nas mais afastadas. Houve até conflitos armados desencadeados por grupos que não aceitavam a derrota de seu país. Mas, gradativamente, a situação foi se normalizando, as escolas começaram a aparecer e os jornais em idioma japonês começaram a circular novamente. Os japoneses se deram conta de que agora não poderiam mais retornar ao seu país, que fora completamente arrasado. Até então, todas as famílias acalentavam o sonho de retornar com uma mala cheia de dinheiro ao Japão. Por isso, havia grande preocupação em proporcionar estudo do idioma japonês a seus filhos, para que pudessem continuar os estudos e residir no Japão.

Essa mudança de pensamento fez com que muitas famílias adquirissem terras, não mais para uso temporário, e sim para fixar residência. E passam a se preocupar em mandar seus filhos para cidades maiores para continuar os estudos no Brasil. A partir de 1949 retornam as viagens de navio ao Japão, mas a relação diplomática entre os dois países só é restabelecida em 28 de abril de 1952. Nessa Época, os imigrantes e seus descendentes se comunicavam em japonês e liam livros e revistas trazidas do Japão. Algumas empresas se especializaram em trazer do Japão os livros, as revistas, os discos e materiais para a prática de esportes como o beisebol e o kendô. Caso da Taiyodo (Casa Sol) e da Casa Ono, que continuam ativos. Quando as revistas de mangácomeçaram a circular no Japão, imediatamente foram trazidas ao Brasil. Vale lembrar que a revista Shonen Club, da editora Kodansha, começou a circular em 1914. SÓ que nessa Época boa parte da revista era formada por contos e Histórias ilustradas para crianças e jovens. Os mangás entraram mais tarde em suas páginas, principalmente depois da 2ª Guerra, seguindo o estilo criado por Osamu Tezuka, considerado o Deus do mangá.

DÉCADA DE 50 EM DIANTE

A facilidade de leitura fez com que os mangás fossem plenamente aceitos pela coletividade nipo-brasileira. As revistas de mangá destinadas a crianças vêm com o furigana, que São as letras miudinhas ao lado do kanji, para facilitar a leitura do ideograma. Assim, não era preciso saber muito da escrita para se ler o mangá. Porém, muitos professores e pais não gostavam que as crianças apreciassem o mangá, pois acreditavam que seriam prejudicadas no aprendizado do idioma correto.

Os mangás se tornaram mais atraentes nas décadas de 60 e 70, com o surgimento de revistas semanais com Histórias continuadas de mangá. Ainda circulavam os títulos antigos, mensais, agora mais recheados de mangá, mas prevaleciam os títulos semanais. Circulavam nessa época: Shonen Club, Shonen Magazine, Margareth, Shojo Friend, Shonen Jump, Shonen King, Ribon, Shonen Sunday, Shonen, Bouken-ou, Shonen Gahou, Bokura, Boys Life, Shougaku Ichinen, ninen, sannen, etc.

Nessa Época, muitos pais compravam os mangás para seus filhos, pois essa leitura permitia o aprendizado agradável do idioma. Vale lembrar que esses descendentes de segunda ou terceira geração estudavam normalmente em escolas comuns e estavam perdendo o contato com o país de seus avós.

Como não havia mangá traduzido para o português, esses leitores sabiam falar e ler o japonês, mesmo que seja só o furigana, a forma simplificada.

Já no final da década de 50 começaram a surgir os primeiros desenhistas de quadrinhos, notadamente influenciados pelo mangá. Apesar da influência inicial, logo perceberam que não havia espaço para esse tipo de traço e tiveram que se aprimorar num estilo mais próximo do americano. É o caso do Julio Shimamoto e do Minami Keizi. Shimamoto atuou muito tempo como diretor de arte na publicidade, mas atualmente se dedica aos quadrinhos. Minami, autor de Tupãzinho, fundou a Editora Edrel na década de 60 e foi responsável pelos primeiros mangás desenhados no Brasil. Vários artistas nikkeis (descendentes de japoneses) foram lançados pela Edrel, caso de Cláudio Seto (ilustração ao lado de “O Samurai”), Paulo e Roberto Fukue, Fernando Ikoma, Kimil Shimizu, entre outros. Com o fechamento da Edrel em meados da década de 70, parte desses profissionais foi parar nos Estúdios Disney (Abril) e na Maurício de Sousa Produções.

No final dessa década, aproveitando uma brecha da censura do governo militar, a editora Grafipar de Curitiba, liderada por Cláudio Seto, passa a editar revistas em quadrinhos com leve tempero erótico. Na Época não havia vídeos e revistas com mulheres nuas eram proibidas, o que explica o relativo sucesso dos lançamentos que se seguiram. Eros (mais tarde Quadrinhos Eróticos), Neuros e Fargo São alguns dos títulos da Grafipar. Com a abertura política, as publicações anteriormente proibidas começaram a circular, e o erotismo leve desenhado acabou perdendo espaço em menos de uma década. Apesar do breve período de existência, o grande mérito da Grafipar foi propiciar o surgimento de novos desenhistas e o retorno de alguns veteranos que haviam abandonado a atividade.

COMO A ABRADEMI SE ENCAIXA NESSE CONTEXTO

Em 1979, Francisco Noriyuki Sato, estudante de publicidade da Universidade de São Paulo, editava um pequeno jornal chamado Jornal Nissei para a Modern Japan, empresa que promovia bailes para a comunidade nikkei no salão da Casa de Portugal, na avenida Liberdade, em São Paulo. Além desse veículo, Noriyuki era colaborador do jornal São Paulo Shimbun, e atuava também como roteirista de quadrinhos da Grafipar.

Como rotina de seu trabalho para o Jornal Nissei estava a pesquisa de eventos organizados pela comunidade nipo-brasileira em São Paulo. Numa das muitas visitas ao Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa) no bairro da Liberdade, constatou que lá não havia nenhuma atividade para o público mais jovem, excetuando um curso de pintura para crianças que era ministrado durante as férias de janeiro. E como o seu pequeno jornal tinha como foco o público bem jovem, era importante que houvesse eventos para esse leitor. Assim, Noriyuki resolveu procurar o secretário geral da entidade para perguntar se não pretendia organizar atividades para jovens.

O economista Hiroshi Banno, secretário geral do Bunkyo na época, atendeu-o em seu escritório localizado na Rua Barão de Itapetininga, e pediu uma sugestão do que poderia ser realizado na entidade. Noriyuki disse que poderia, por exemplo, ser organizada uma exposição de quadrinhos. Banno ficou em dúvida pois tinha receio de não conseguir reunir os trabalhos de vários artistas para isso. Foi então que Noriyuki se comprometeu a levar os próprios desenhistas para uma nova reunião. E nessa reunião participaram os desenhistas e os ex-desenhistas da Disney, como Paulo Fukue, Michio Yamashita, Jorge Kato, Roberto Higa, Sergio Hamasaki (que convidou a maioria dos desenhistas da Disney) e Kimil Shimizu, além de outros da Grafipar, como o Roberto Kussumoto e Ataíde Braz (roteirista), e a professora do departamento de editoração da USP, Sonia Luyten.

Convencido da concretização da exposição, Hiroshi Banno imediatamente constituiu uma comissão de quadrinhos e ilustrações, da qual, Banno, representando a entidade, se tornou presidente, e Francisco Noriyuki Sato ficou sendo o vice-presidente. A 1ª exposição foi marcada para fevereiro de 1980, juntamente com a exposição dos alunos do curso de pintura de férias do Bunkyo, cujos professores eram os reconhecidos artistas plásticos, Ken-ichi Hirota e Kenichi Kaneko (também ator). Houve apoio da mídia (a TV Cultura levou sua equipe para fazer cobertura do evento, e não era comum aparecerem eventos “de japoneses” na mídia na época) e a exposição alcançou sucesso, conseguindo levar um bom público infanto-juvenil que não costumava frequentar a entidade.

Noriyuki sempre acreditou que era preciso organizar exposições para que o pessoal da área de HQ pudesse se reunir, e nessas ocasiões poderiam surgir boas ideias. Na Grafipar, que ficava em Curitiba, os roteiristas como o Noriyuki enviavam os textos pelo correio para o editor Cláudio Seto. E o Seto reenviava aquele texto para os desenhistas mais apropriados para aquele assunto. Assim, roteiristas e desenhistas trabalhavam juntos, mas não se conheciam. Noriyuki havia participado da revista Quadreca da USP, editada pela profa. Sonia Luyten, mas não a conhecia. Foi na Exposição de Quadrinhos realizada no Sesc Interlagos em janeiro de 1978 que a conheceu. Aliás, naquele evento acabou conhecendo o pessoal jovem da HQ como o Jal, Franco de Rosa, Ataíde Braz, Roberto Kussumoto e a turma que fazia fanzine de quadrinhos nas faculdades.

Em 1981 e 1982 foram realizadas novas exposições no Bunkyo, descobrindo novos talentos e principalmente criando amizade entre os participantes. Descobriu-se que havia muitos amadores que desenhavam no estilo mangá, mas não tinha onde apresentar seus trabalhos.
Foto de 1981. A partir da esquerda: Roberto Kussumoto, Hiroshi Banno, Francisco Noriyuki Sato e Michio Yamashita na abertura da Exposição no Bunkyo.

Em 1983, a exposição foi marcada para julho e seria independente da exposição de pintura das crianças, pois se provou que o saguão do auditório principal não comportava essas duas exposições. Alguns meses antes da data marcada, porém, a exposição foi desmarcada sem nenhum aviso pelo gerente da entidade, que alugou o espaço para a empresa Yakult. Ao ser questionado do porquê do cancelamento de um evento marcado com um ano de antecedência, veio a resposta, curta e grossa: “vocês não pagam aluguel”. Revoltados com o fato, uma vez que a exposição de quadrinhos era um evento oficial da própria entidade, e que não causava nenhum gasto para a entidade, pois os trabalhos eram trazidos, montados e expostos pela própria comissão organizadora, Noriyuki e Naomy Kuroda, membros da comissão, foram falar com o presidente do Bunkyo, Masuichi Omi. Na época, Hiroshi Banno não fazia mais parte daquela entidade e cabia ao Noriyuki resolver essas questões.

Na reunião com Masuichi Omi em sua residência, a dupla ouviu palavras de apoio à iniciativa, porém, o presidente disse-lhes que não poderia fazer nada para resolver essa questão das datas para a exposição. Ele não sabia do que havia ocorrido, porém, lembrou que na locação com uma empresa havia um contrato e esse teria que ser respeitado. Ao invés disso, sugeriu que se fundasse uma associação, e que essa entidade assinasse um contrato com o Bunkyo, ficando as futuras exposições asseguradas na data escolhida. Com muita sabedoria, Omi alegou que uma associação não deveria ficar apenas fazendo uma exposição por ano. Deveria sim, realizar palestras, cursos e outras atividades pertinentes à área, e para isso, disponibilizou uma sala de reunião do Bunkyo em datas sem utilização.

A ideia foi aceita e os remanescentes da antiga comissão de quadrinhos e ilustrações do Bunkyo passaram a se reunir para fundar a Associação Brasileira de Mangá e Ilustrações – Abrademi. Da primeira comissão de exposição restavam Roberto Higa, Michio Yamashita, Sonia Luyten, Roberto Kussumoto, Noriyuki Sato, Ataíde Braz e Nelson Yoshimura, sendo fortalecida por jovens que vieram com as exposições: Naomy Kuroda e Nelson Kurokawa, entre outros.

Para a efetivação da nova entidade, entretanto, nem tudo foram flores. Na época, poucas pessoas conheciam o mangá, e uma entidade cultural com um tema tão específico e exótico, não poderia ser levada a sério. Assim, foi sugerida uma fusão com a Associação dos Amigos de Mangá, um grupo informal da Escola de Comunicação e Artes da USP, idealizada pela professora Sonia Luyten, que se propunha a estudar mangá na Universidade de São Paulo. Na verdade, era um grupo muito pequeno, formado por poucos alunos do curso de editoração daquele semestre, que resolveram fazer um pioneiro estudo sobre o mangá como tema dentro da atividade acadêmica, no momento em que a própria professora Sonia Luyten ainda não tinha se especializado no assunto.

Desse grupo, além da profa. Sonia, que já fazia parte da comissão que deu origem a Abrademi, veio a Sumire Misawa. A Abrademi foi oficialmente fundada no dia 3 de fevereiro de 1984, discutindo-se os objetivos da entidade e criando o seu nome, que foi sugerido pela Sonia. Entretanto, a primeira reunião importante com a divisão de cargos da Abrademi, aconteceu no dia 1º de abril. O grupo se reuniu na biblioteca do Bunkyo e foi expulso sob alegação de atrapalhar a concentração dos frequentadores da biblioteca, e a reunião foi concluída no corredor do subsolo. Algumas pessoas novas que vieram participar, quando viram a precariedade da nova entidade que estava surgindo, desistiram e nunca mais voltaram.

O presidente do Bunkyo, Masuichi Omi, deu a sugestão da criação da Abrademi, mas os funcionários e colaboradores daquela entidade procuraram desprezar a Abrademi, que àquela altura já se preocupava com a continuidade dessas entidades no futuro. Seria importante haver outras entidades como a Abrademi para criar nos jovens uma ligação com a cultura japonesa.

(continua...)

Ao utilizar este texto, favor citar a fonte:
www.abrademi.com – autor: Francisco Noriyuki Sato, presidente da Abrademi de1984 a 1986 e de1988 a 1996.