LOBO SOLITÁRIO – KOZURE ÕKAMI de KAZUO KOIKE e GOSEKI KOJIMA

por Cristiane A. Sato

Um ronin (samurai sem mestre, que caiu em desgraça) despenteado e usando um kimono surrado, caminha contra o vento empurrando um carrinho de madeira, com sua inseparável kataná (espada curva) longa à cintura. Sua altivez é resquício de suas nobres origens. Dentro do carrinho, um menininho de três anos, de cabeça parcialmente raspada, silenciosa e resignadamente acompanha seu pai, um matador de aluguel, numa lenta e sangrenta jornada pelo Japão feudal. O povo apelidou oronin errante e a criança de “o Lobo Solitário e seu Filhote”.

Tal imagem marca uma das mais famosas histórias de samurais do mundo:Kozure Õkami (O Lobo que Carrega a Criança). Criada em 1970 pelo roteirista Kazuo Koike e desenhada por Gõseki Kojima, esta envolvente aventura foi originalmente criada na forma de gekigá (um dos muitos tipos de mangás - quadrinhos japoneses – mas direcionado a adultos, com desenhos menos caricatos e mais realistas do que os usados em histórias para crianças e adolescentes, e de tramas complexas). Publicado em capítulos semanais de 1970 a 1976 na revista “Mangá Action”, Kozure Õkami foi um sucesso instantâneo. Centenas de milhares acompanharam a série durante os 6 anos em que foi publicada, e pouco tempo depois a coletânea da história editada em livros, num total de 28 volumes e 9 mil páginas,que vendeu impressionantes 8 milhões de cópias somente no Japão.

Trata-se das aventuras fictícias de Itto Ogami, espadachim de habilidade sobre-humana e ex-kaishakunin, o carrasco oficial do shogunato Tokugawa. Sua espada era considerada uma extensão da própria vontade do shõgun, temida mesmo pelos poderosos no Japão. Vítima de um complô engendrado por Retsudo Yagyû, patriarca de uma família rival que almejava o posto de kaishakunin para seu clã, visando pôr em prática um complexo plano cujo poder era matar o shõgun e tomar o poder, Ogami torna-se um fugitivo após o massacre de toda sua família, do qual apenas seu filho, Daigorõ, sobreviveu.

Apesar de baseado num tema antigo, Kozure Õkami criou um novo padrão para o gênero. O que poderia ter sido uma mera história de vingança ambientada no passado, com um infindável desfile de seqüências sangrentas, tornou-se um grande clássico graças à comovente relação pai e filho. Mesmo tendo se tornado um ronin, Ogami é acima de tudo um homem de caráter incorruptível e inabalável. Da mesma forma que um dia ele foi fiel praticante do bushido (o Código dos Samurais), ele passa a seguir o meifumado (o “caminho do inferno”), pelo qual uma pessoa obstinada pela vingança decide viver nas mais árduas condições e cercada pela morte – um tipo de vida pior que a morte em si.

Contrastando com a figura madura e forte do pai, Daigorõ, um quase-bebê, é misto de inocência pueril com alma de samurai adulto. Alguns dos capítulos mais tocantes são aqueles em que o pequeno Daigorõ, mesmo sem dizer uma palavra, participa ativamente da história demonstrando ser o maior aliado de seu pai, superando suas naturais limitações de criança, e trazendo algo de poético em meio à violência que os cerca. Quando Ogami está cercado por vários inimigos, Daigorõ observa tudo atentamente, esperando o desenlace do confronto, revelando apenas com um sorriso a alegria e o alívio pelo pai ter sobrevivido. Quando seu pai adoece e permanece desacordado por dias, Daigorõ não se desespera como uma criança comum, mas aprende sozinho a pescar e assar peixes, deixando-os ao lado do pai na esperança de que ele acorde e se alimente, e disposto a empunhar uma espada maior que ele mesmo para proteger o pai indefeso.

Durante anos, Ogami vaga pelo Japão vivendo como assassino de aluguel, com o objetivo de juntar fortuna suficiente para voltar a Edo (antigo nome de Tóquio, capital do shogunato) e consumar sua vingança, mesmo que isso lhe custe a própria vida e a de seu filho. Ogami, contudo, não age só por dinheiro. Muito do que ele faz é por questões de honra ou de seu particular senso de justiça, mas o desfecho é sempre trágico, dando à história uma constante característica agridoce.

A narrativa visual em Kozure Õkami é um atrativo à parte. Para o leitor é como estar assistindo a um filme em folhas de papel. Os autores deram-se ao luxo de desenhar inúmeras páginas sem texto, mas carregadas de impacto visual, imitando recursos cinematográficos como sobreposição de imagens na mudança de seqüências, fade in e fade out, closes de personagens, ou cenas do tamanho de uma ou duas páginas inteiras para aumentar a dramaticidade da história. No início dos anos 80 Frank Miller, hoje consagrado desenhista de quadrinhos americano, mesmo sem entender uma única letra do que estava lendo, encantou-se com estemangá. Em 1985 ele lançou o revolucionário “Batman, o Cavaleiro das Trevas”, usando o mesmo estilo de narrativa visual de Kozure Õkami. O enorme sucesso do “Cavaleiro das Trevas” iniciou a Batmania no ocidente, que culminou com o lançamento de vários filmes do Homem-Morcego com astros de Hollywood como Jim Carey, Arnold Schwarzenegger e Michelle Pfeiffer.

Outro fator que contribuiu para o sucesso de Kozure Õkami foi uma cuidadosa pesquisa de época, que mostrou com razoável grau de realismo como era a vida nos tempos do shogunato – das vilas de agricultores de arroz, explorados pelos fiscais de impostos do governo, à complexa e formalista etiqueta das classes dominantes de Edo, onde imperava a intriga e uma gafe era suficiente para que a pessoa fosse obrigada a cometer sepukku (suicídio ritual). As andanças de Ogami e Daigorõ levaram seus leitores a regiões isoladas, bem como a movimentadas hospedarias perto de estradas, cujas funcionárias, além de arrumar os quartos, lavar e cozinhar, tinham que atrair clientes literalmente puxando-os da rua pelo braço, e atendê-los como prostitutas. Entretanto, deve-se salientar que, embora tendo muitos elementos de realidade histórica,Kozure Õkami é fundamentalmente uma obra de ficção.

Histórias de samurais idealistas e justiceiros sempre foram muito populares no Japão. Ainda no período feudal, na Era Edo (1603-1867), contos ilustrados sobre samurais famosos, de Musashi Miyamoto aos 47 Ronins, tornaram-se passatempo predileto de comerciantes e caixeiros-viajantes, que divertiam-se com tais leituras. Dado seu grau de popularidade, com o advento dos quadrinhos e do cinema no Japão no século XX, tais histórias foram rapidamente adaptadas para novas mídias, através das quais elas continuaram fazendo sucesso, gerando estilos como o  jidaigeki mangá, ochambara eiga e o taiga dorama (respectivamente, quadrinhos, cinema e novelas históricas).

No Japão, Kozure Õkami gerou a produção de 4 peças de teatro, 6 longa-metragens para cinema, uma novela e uma série de tevê, que tornaram os atores-espadachins Tomisaburo Wakayama e Kinnosuke Yorozuya famosos por encarnar Itto Ogami nas telas. No Brasil, a história de Kozure Õkamifoi apresentada pela primeira vez na forma da novela para tevê, dublada em português e exibida com o título de “O Samurai Fugitivo” no início da década de 80 pela nascente rede SBT, formada pela fusão da TVS canal 11 Rio, pertencente ao famoso apresentador de TV Sílvio Santos, com a então falida TV Tupi canal 4 São Paulo.

Nos Estados Unidos, a partir de 1988, o desenhista Frank Miller ajudou a publicar uma versão traduzida para o inglês do mangá de Kozure Õkami. Diferentemente de hoje, os quadrinhos japoneses não eram populares no ocidente. O público não estava acostumado a folhear revistas da esquerda para a direita e a ler no sentido contrário, vendo onomatopéias em japonês, o que exigiu enorme trabalho de adaptação para que a história pudesse ser publicada nos Estados Unidos. Esta versão traduzida para o inglês, lançada com o título de Lone Wolf and Cub (Lobo Solitário e Filhote), tornou-se famosa no mundo inteiro, servindo de matriz para várias outras traduções em idiomas ocidentais. Ainda em 1988, a primeira edição em português do mangá foi lançada pela editora Cedibra com o título de “Lobo Solitário”, nome pelo qual a história de Kozure Õkami é até hoje conhecida no país.

Mais recentemente, uma nova série para TV escrita pelo roteirista original de Kozure Õkami, Kazuo Koike, foi levada ao ar em 2002 no Japão pela Asahi TV, tendo o ator Kinya Kitaoji no papel principal. Em 2004, o mangáKozure Õkami foi premiado nos Estados Unidos com o Will Eisner Awards (o “Oscar” dos quadrinhos, promovido em San Diego, Califórnia, que também é uma homenagem a Eisner, desenhista internacionalmente reconhecido e criador de Spirit, falecido em 2005 aos 87 anos como o mais velho quadrinhista em atividade no mundo). Koike e o desenhista Goseki Kojima, falecido em 2000 aos 71 anos, viram em três décadas seu trabalho rodar o mundo, tornar-se a quinta-essência das histórias de samurais e virar importante referência no gênero. Um verdadeiro clássico. Apesar de Itto Ogami e Daigorõ serem personagens fictícios, é inegável que a imagem doronin invencível, empurrando um carrinho de madeira com uma frágil mas corajosa criança no colo, foi integrada definitivamente ao imaginário coletivo como a personificação do ideal samurai.

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